Resumindo: quem me dera
poder pôr de parte os arcaicos jogos de linguagem ou mesmo as
«patologias discursivas» de uma mundivisão religiosa. Quem me dera
superar assertivamente esta «perturbação infantil» (uma expressão
de Lenine que também poderia ser de Freud), e aceder a uma ordem
naturalista absolutamente racional, que apenas responde à razão e à
solidão.
Os inventários são
fastidiosos. Não provam nada. Mas de que outro modo posso eu expor
as minhas «perplexidades» (segundo o termo diplomático de
Maimónides)? Qualquer listagem de intelectos supremos, de
capacidades racionais e analíticas extraordinárias, deve, ainda que
limitada à tradição ocidental, incluir Sócrates, Platão,
Aristóteles, Agostinho, Pascal (em muitos aspectos uma sensibilidade
científica de primeira categoria), Newton e Immanuel Kant. Se
levarmos em consideração os imensos dispêndios de imaginação ou
«demonstração» através do exemplo requeridos pela diagnose da
compreensão, o nosso lote teria de incluir Dante, Tolstoi,
Dostoievski. Existe uma «presença divina» bem documentada na obra
de um Descartes, de um Einstein ou de um Wittgenstein. Mas para quê
continuar? Parece óbvio que «o melhor que se pensou e se formou»
no nosso legado intelectual, com algumas honrosas excepções
(Shakespeare?) se baseia e se inspira num ou outro modo, numa ou
outra narrativa da presença divina, de uma dimensão não empírica
da realidade. Bach, Beethoven ou Miguel Ângelo não existiriam sem
essa garantia. Por outro lado, a réplica é igualmente óbvia: estas
autoridades de peso pertencem cada vez mais ao passado. O seu
testemunho limita-se a demarcar uma fase da bioquímica produtiva e
evolutiva do homo (ainda não completamente) sapiens sapiens.
Como augurou Trotski, até um Aristóteles ou um Goethe existem para
serem superados.
Percebo perfeitamente a
lógica arrogante desta refutação, mas acho-a algo omissa. Nas
ciências exactas e aplicadas, o progresso é um facto demonstrável.
A asserção de que eu ou alguém tenhamos, simplesmente por via do
contexto sócio-intelectual ou de um brevíssimo lapso temporal,
capacidades de reflexão analítica e de entendimento acerca da
natureza do homem e da existência mais penetrantes (não digo,
«diferentes») do que as de Platão, Dante ou Pascal, parece-me
extremamente duvidosa. O mesmo se passa, aliás, com a afirmação
paralela de que esses homens e/ou mulheres foram vítimas de uma
ilusão colectiva, de superstições consensuais, daquilo a que a
lógica chama de «erros categóricos» (a confusão de um jogo de
linguagem com outro). A presunção de que superámos Espinosa ou
Kant - apesar de contarmos a nossa história de modos diferentes -
não me convence. Bem sei que os argumentos de autoridade são
suspeitos (embora também abundem nas ciências). Mas já que podemos
escolher a nossa própria companhia, a dos crentes é extremamente
distinta. Rejeitá-la, conferir às suas percepções um alcance
meramente retórico ou antiquado, é elidir a maior parte da nossa
civilização.
Mas não foi precisamente
isso o que fizeram a «ausência de Deus» de Auschwitz e a criança
a morrer de cancro no hospital?
A invocação de
precedentes, que intuitivamente são bastante convincentes ainda que
logicamente nulos, passa necessariamente pela metafísica, a arte, a
literatura e a música que preencheram a minha vida, implicando
igualmente o misterioso deslumbramento de certos encontros e relações
íntimas. No Ocidente (mas não só), grande parte dos artefactos
humanos - espirituais, materiais e intelectuais - foram feitos para
exaltação da glória de Deus. Ad maiorem gloriam Dei. A
Oresteia de Ésquilo e o Timeu de Platão; os Salmos de
Job; os templos de Pessto e as nossas catedrais; as Confissões
de Agostinho e a Commmedia; a Capela Sistina e a Missa
Solemnis. Imagine-se as nossas paisagens sem os seus lugares de
culto; as nossas artes e música sem a sua reverência à fé; a
nossa filosofia e metafísica, desde os pré-socráticos até
Heidegger, se lhes faltassem o ímpeto, a investigação e o debate
sobre a experiência religiosa, o princípio primordial ou a força
motriz. Já referi Shakespeare como uma possível excepção de peso.
As suas peças carecem aparentemente de qualquer posição religiosa
distinta. Ocasionalmente a «questão divina» coloca-se de modo
veemente: em Lear e nas parábolas veladas de salvação que
percorrem as últimas obras. Mas a verdade é que não conseguimos
apontar-lhe nenhum credo.
Descontando Shakespeare, a
estética e o discurso filosófico das nossas tradições têm desde
sempre professado, alegorizado, investigado e narrado, de modos
múltiplos, uma «espera de Godot». A música, sobretudo,
encontra-se profundamente comprometida com esta intimação, sendo,
em grande parte e publicamente, «sagrada». Isto acontece tanto com
uma cantata de Bach ou um Requiem de Mozart como com uma sinfonia de
Mahler ou um cântico de Britten. Mas a relação entre música e
sentimento religioso é simultaneamente mais penetrante e difícil de
explicar. Na maioria de nós, como tentei demonstrar, a música , de
que gostamos, que nos habita de modo indispensável, induz um
aprofundamento, uma receptividade das emoções que os psicólogos
designaram por «oceânicas». Somos «transportados», «traduzidos»,
de modo tão humilde e extático como o foi Bottom em Sonho de Uma
Noite de Verão. Mas como, e para onde? A analogia (que talvez
seja mais do que isso) com as apreensões psicossomáticas do
transcendente, do insistentemente inexplicável, é cativante. Diz-se
que a música representa a oração do não crente ou não
praticante. Mas a quem se dirige essa oração?
Julgo que o paralelismo
entre a música e a fé pode ser mais aprofundado. A música
significa de um modo profundo; tem uma significação total. Mas os
seus sentidos e significações não podem ser verbalizados,
parafraseados de modo adequado ou conceptualmente traduzidos para
qualquer outro domínio além da interpretação repetida. A lógica
não tem qualquer ascendente sobre os sentidos musicais. Duvido muito
que as hipóteses neurofisiológicas relativas à consciência venham
a explicar a criação da música ou o seu impacte sobre nós. Ambos
estes factos existenciais, sem os quais, como disse Nietzsche, a vida
seria vazia, são empiricamente manifestos e transformadores da
existência ao mais alto nível da experiência humana. Contudo,
parecem escapar ao entendimento analítico-experimental.
Ora, o «sem-sentido»
significante das proposições teológicas e litúrgicas partilha da
mesma resistência tautológica à análise. É possível que essas
proposições materializem uma tentativa frustrada de transcrever,
num código limitado de frases gramaticais lineares, necessidades de
sentimento e de intuição que são radicalmente «musicais». Aquilo
em que acredito é o seguinte: se a questão da existência ou não
existência de Deus cair na banalidade, se se apagar da nossa
consciência pública e privada como algo de um passado remoto, o
pensamento e a totalidade das artes tal como as conhecemos
alterar-se-ão profundamente. É possível que, depois de movimentos
de transição turvos e turbulentos, venham a contar histórias
inteiramente novas e sem precedentes, produzindo imagens do mundo que
por enquanto não podemos prever. Já hoje encontramos gente, como
Foucault, a proclamar a morte do autor, da criação individual, e
mesmo da persona humana.
Julgo que é mais modesto e plausível supor que aquilo que não
poderá subsistir, na ausência da questão divina e das suas
metáforas, serão certas magnitudes formais e executivas da
realização metafísica e estética. Os construtos abrangentes de
uma ordem intuída, tal como existem em Dante, numa Paixão de Bach,
nas críticas de Kant ou nos frescos de Giotto, mas também nas
parábolas concisas de Kafka em que cada sílaba se reveste de
angústia dirigida a Deus, poderão pertencer ao passado.
George Steiner, Errata: revisões de uma vida
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