domingo, 10 de junho de 2012


Resumindo: quem me dera poder pôr de parte os arcaicos jogos de linguagem ou mesmo as «patologias discursivas» de uma mundivisão religiosa. Quem me dera superar assertivamente esta «perturbação infantil» (uma expressão de Lenine que também poderia ser de Freud), e aceder a uma ordem naturalista absolutamente racional, que apenas responde à razão e à solidão.
Os inventários são fastidiosos. Não provam nada. Mas de que outro modo posso eu expor as minhas «perplexidades» (segundo o termo diplomático de Maimónides)? Qualquer listagem de intelectos supremos, de capacidades racionais e analíticas extraordinárias, deve, ainda que limitada à tradição ocidental, incluir Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Pascal (em muitos aspectos uma sensibilidade científica de primeira categoria), Newton e Immanuel Kant. Se levarmos em consideração os imensos dispêndios de imaginação ou «demonstração» através do exemplo requeridos pela diagnose da compreensão, o nosso lote teria de incluir Dante, Tolstoi, Dostoievski. Existe uma «presença divina» bem documentada na obra de um Descartes, de um Einstein ou de um Wittgenstein. Mas para quê continuar? Parece óbvio que «o melhor que se pensou e se formou» no nosso legado intelectual, com algumas honrosas excepções (Shakespeare?) se baseia e se inspira num ou outro modo, numa ou outra narrativa da presença divina, de uma dimensão não empírica da realidade. Bach, Beethoven ou Miguel Ângelo não existiriam sem essa garantia. Por outro lado, a réplica é igualmente óbvia: estas autoridades de peso pertencem cada vez mais ao passado. O seu testemunho limita-se a demarcar uma fase da bioquímica produtiva e evolutiva do homo (ainda não completamente) sapiens sapiens. Como augurou Trotski, até um Aristóteles ou um Goethe existem para serem superados.
Percebo perfeitamente a lógica arrogante desta refutação, mas acho-a algo omissa. Nas ciências exactas e aplicadas, o progresso é um facto demonstrável. A asserção de que eu ou alguém tenhamos, simplesmente por via do contexto sócio-intelectual ou de um brevíssimo lapso temporal, capacidades de reflexão analítica e de entendimento acerca da natureza do homem e da existência mais penetrantes (não digo, «diferentes») do que as de Platão, Dante ou Pascal, parece-me extremamente duvidosa. O mesmo se passa, aliás, com a afirmação paralela de que esses homens e/ou mulheres foram vítimas de uma ilusão colectiva, de superstições consensuais, daquilo a que a lógica chama de «erros categóricos» (a confusão de um jogo de linguagem com outro). A presunção de que superámos Espinosa ou Kant - apesar de contarmos a nossa história de modos diferentes - não me convence. Bem sei que os argumentos de autoridade são suspeitos (embora também abundem nas ciências). Mas já que podemos escolher a nossa própria companhia, a dos crentes é extremamente distinta. Rejeitá-la, conferir às suas percepções um alcance meramente retórico ou antiquado, é elidir a maior parte da nossa civilização.
Mas não foi precisamente isso o que fizeram a «ausência de Deus» de Auschwitz e a criança a morrer de cancro no hospital?
A invocação de precedentes, que intuitivamente são bastante convincentes ainda que logicamente nulos, passa necessariamente pela metafísica, a arte, a literatura e a música que preencheram a minha vida, implicando igualmente o misterioso deslumbramento de certos encontros e relações íntimas. No Ocidente (mas não só), grande parte dos artefactos humanos - espirituais, materiais e intelectuais - foram feitos para exaltação da glória de Deus. Ad maiorem gloriam Dei. A Oresteia de Ésquilo e o Timeu de Platão; os Salmos de Job; os templos de Pessto e as nossas catedrais; as Confissões de Agostinho e a Commmedia; a Capela Sistina e a Missa Solemnis. Imagine-se as nossas paisagens sem os seus lugares de culto; as nossas artes e música sem a sua reverência à fé; a nossa filosofia e metafísica, desde os pré-socráticos até Heidegger, se lhes faltassem o ímpeto, a investigação e o debate sobre a experiência religiosa, o princípio primordial ou a força motriz. Já referi Shakespeare como uma possível excepção de peso. As suas peças carecem aparentemente de qualquer posição religiosa distinta. Ocasionalmente a «questão divina» coloca-se de modo veemente: em Lear e nas parábolas veladas de salvação que percorrem as últimas obras. Mas a verdade é que não conseguimos apontar-lhe nenhum credo.
Descontando Shakespeare, a estética e o discurso filosófico das nossas tradições têm desde sempre professado, alegorizado, investigado e narrado, de modos múltiplos, uma «espera de Godot». A música, sobretudo, encontra-se profundamente comprometida com esta intimação, sendo, em grande parte e publicamente, «sagrada». Isto acontece tanto com uma cantata de Bach ou um Requiem de Mozart como com uma sinfonia de Mahler ou um cântico de Britten. Mas a relação entre música e sentimento religioso é simultaneamente mais penetrante e difícil de explicar. Na maioria de nós, como tentei demonstrar, a música , de que gostamos, que nos habita de modo indispensável, induz um aprofundamento, uma receptividade das emoções que os psicólogos designaram por «oceânicas». Somos «transportados», «traduzidos», de modo tão humilde e extático como o foi Bottom em Sonho de Uma Noite de Verão. Mas como, e para onde? A analogia (que talvez seja mais do que isso) com as apreensões psicossomáticas do transcendente, do insistentemente inexplicável, é cativante. Diz-se que a música representa a oração do não crente ou não praticante. Mas a quem se dirige essa oração?
Julgo que o paralelismo entre a música e a fé pode ser mais aprofundado. A música significa de um modo profundo; tem uma significação total. Mas os seus sentidos e significações não podem ser verbalizados, parafraseados de modo adequado ou conceptualmente traduzidos para qualquer outro domínio além da interpretação repetida. A lógica não tem qualquer ascendente sobre os sentidos musicais. Duvido muito que as hipóteses neurofisiológicas relativas à consciência venham a explicar a criação da música ou o seu impacte sobre nós. Ambos estes factos existenciais, sem os quais, como disse Nietzsche, a vida seria vazia, são empiricamente manifestos e transformadores da existência ao mais alto nível da experiência humana. Contudo, parecem escapar ao entendimento analítico-experimental.
Ora, o «sem-sentido» significante das proposições teológicas e litúrgicas partilha da mesma resistência tautológica à análise. É possível que essas proposições materializem uma tentativa frustrada de transcrever, num código limitado de frases gramaticais lineares, necessidades de sentimento e de intuição que são radicalmente «musicais». Aquilo em que acredito é o seguinte: se a questão da existência ou não existência de Deus cair na banalidade, se se apagar da nossa consciência pública e privada como algo de um passado remoto, o pensamento e a totalidade das artes tal como as conhecemos alterar-se-ão profundamente. É possível que, depois de movimentos de transição turvos e turbulentos, venham a contar histórias inteiramente novas e sem precedentes, produzindo imagens do mundo que por enquanto não podemos prever. Já hoje encontramos gente, como Foucault, a proclamar a morte do autor, da criação individual, e mesmo da persona humana. Julgo que é mais modesto e plausível supor que aquilo que não poderá subsistir, na ausência da questão divina e das suas metáforas, serão certas magnitudes formais e executivas da realização metafísica e estética. Os construtos abrangentes de uma ordem intuída, tal como existem em Dante, numa Paixão de Bach, nas críticas de Kant ou nos frescos de Giotto, mas também nas parábolas concisas de Kafka em que cada sílaba se reveste de angústia dirigida a Deus, poderão pertencer ao passado.
George Steiner, Errata: revisões de uma vida

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