Sentamo-nos e comemos com
gosto, e depois disso retiramo-nos para a cama extenuados.
Para a cama - mas não
para descansar! Nunca fui pessoa que tivesse uma aversão exagerada a
ratos. Um rato ou outro num quarto, casualmente, sempre me deixaram impassível, e numa
ocasião cheguei mesmo a sentir afeição por um intruso perseverante
a quem chamava afectuosamente (embora sem lhe conhecer o sexo) Elsie.
Mas a nossa primeira noite
em Amuda foi uma experiência que nunca esquecerei.
Assim que apagámos os
candeeiros, dezenas de ratos - na verdade creio que seriam às
centenas - saem dos buracos das paredes e do chão. Correm
alegremente por cima das nossas camas, chiando ao mesmo tempo. Ratos
por cima da cara, ratos a puxarem-nos os cabelos - ratos! Ratos!
RATOS!. ..
Acendo uma lanterna.
Horrível! As paredes estão cobertas de criaturas estranhas, pálidas
e rastejantes, parecidas com baratas! Está um rato sentado aos pés
da minha cama a cuidar dos bigodes!
Há coisas rastejantes
horrorosas por todo o lado! Max pronuncia palavras calmantes.
Vê se dormes, diz ele.
Quando estiveres a dormir, nenhuma dessas criaturas te apoquenta.
Excelente conselho, mas
não é fácil de seguir! Primeiro, uma pessoa tem de adormecer e,
com os ratos a fazerem exercício físico e desportos de ar livre em
cima de nós, isso é pouco possível. Ou então não é possível
para mim. Max parece ser capaz de o fazer sem problemas!
Esforço-me para reprimir
os tremores da carne. Adormeço durante um instante, mas os pezinhos
a correr pela minha cara acordam-me. Ligo a lanterna. As baratas
aumentaram e uma enorme aranha negra está a descer do tecto por cima
de mim!
A noite assim continua, e
sinto vergonha de dizer que às duas da madrugada fico histérica.
Declaro que quando amanhecer vou para Kamichlie esperar pelo comboio
e volto directamente para Alepo! E de Alepo sigo directa para
Inglaterra! Não consigo suportar esta vida! Não vou aguentar isto!
Vou para casa!
Max trata da situação de
forma magistral. Levanta-se, abre a porta e chama por Hamoudi.
Cinco minutos depois já
as nossas camas foram arrastadas para o pátio. Fico algum tempo
deitada a olhar para o céu estrelado e tranquilo por cima de nós. O
ar é fresco e doce. Adormeço. Max, suponho, dá um suspiro de
alívio antes de adormecer também.
Não é verdade que vais
voltar para Alepo? , pergunta Max na manhã seguinte, ansioso.
Coro um pouco, ao
lembrar-me do meu acesso de histeria. Não, respondo; na verdade, não
me iria embora por nada deste mundo. Mas vou continuar a dormir no
pátio!
Hamoudi explica em tom
tranquilizador que em breve tudo estará como deve ser. Os buracos no
quarto vão ser tapados com gesso. Será caiado outra vez. Além
disso, está para chegar um gato; é emprestado. É um super-gato -
um gato altamente profissional.
Que noite foi a dele,
pergunto a Mac, quando ali chegou com Hamoudi? Correram-lhe bichos
por cima toda a noite?
«Acho que sim», diz Mac,
calmo como sempre. «Mas eu estava a dormir.»
Maravilhoso Mac!
O nosso gato chega à hora
do jantar. Nunca esquecerei aquele gato! Tal como Hamoudi anunciou, é
um gato altamente profissional. Conhece bem o trabalho para que foi
contratado e começa a executá-lo de uma forma realmente
especializada.
Enquanto jantamos ele
agacha-se, de emboscada, atrás de um caixote. Quando falamos, ou nos
mexemos, ou fazemos muito barulho, lança-nos um olhar impaciente.
«Tenho de vos solicitar», diz o olhar, «que estejam calados. Como
posso eu fazer o meu trabalho sem colaboração?» A expressão do
gato é tão feroz que nós obedecemos prontamente, falamos em
segredo e comemos tilintando o menos possível os pratos e os copos.
Durante a refeição, por
cinco vezes um rato aparece e atravessa o chão, e cinco vezes o
nosso gato salta. A sequência é imediata. Não há cá perdas de
tempo à maneira ocidental, nada de brincar com a vítima. O gato
simplesmente arranca a cabeça ao rato com uma dentada, tritura-a com
os dentes e prossegue com o resto do corpo! É horrível quanto baste
e inteiramente profissional.
O gato fica na nossa
companhia cinco dias. Após esses cinco dias não se vê um único
rato. O gato vai-se embora e os ratos nunca mais voltam. Nunca
conheci, nem antes nem depois, um gato tão profissional. Não tinha
qualquer interesse em nós, nunca pediu leite nem um pouco da nossa
comida. Era frio, científico e impessoal. Um gato muito prendado!
(...)
A casa agora já está organizada. O quarto onde inicialmente dormimos, e que ainda é percorrido pelas baratas de noite, é o gabinete de desenho. Ali, Mac pode trabalhar em solidão, livre de contactos humanos. De qualquer modo, ele é totalmente indiferente às baratas!
(...)
A casa agora já está organizada. O quarto onde inicialmente dormimos, e que ainda é percorrido pelas baratas de noite, é o gabinete de desenho. Ali, Mac pode trabalhar em solidão, livre de contactos humanos. De qualquer modo, ele é totalmente indiferente às baratas!
(...)
Onde era a casa do padre
são três quartos de cama - livres de ratos (graças ao nosso gato),
livres de baratas (graças à abundante caiação?), mas infelizmente
não livres de pulgas!
Vamos ter muito que sofrer
com as pulgas. A pulga tem uma energia abundante e parece ter uma
vida milagrosamente protegida. Medra com o Keatings e com o Flit, e
com toda a espécie de insecticida para pulgas. Esfregar as camas com
ácido carbónico só serve para estimular as pulgas a fazerem
exibições de atletismo ainda maiores. Não é tanto a mordedura das
pulgas, explico eu a Mac. É a sua inesgotável energia, as suas
corridas de saltos intermináveis em volta da nossa barriga, que nos
esgotam a paciência. É impossível que o sono nos vença quando as
pulgas andam a praticar os seus divertimentos nocturnos em torno da
nossa cintura sem parar.
Max sofre mais do que eu
com as pulgas. Um dia apanhei e matei cento e sete no cordão do seu
pijama! Ele diz que acha as pulgas enervantes. Dir-se-ia que eu só
apanho as sobras de pulgas - isto é, aquelas que não conseguiram
arranjar domicílio em Max. As minhas são pulgas de segunda
categoria, pulgas inferiores, sem qualificação para o salto em
altura!
Agatha Christie, Na Síria
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