Chegou o Inverno. Notável:
o tempo passava por cima de todos os bons princípios como por cima
de todas as falhas que não se consegue domar. Havia nesta passagem
do tempo uma beleza que fazia esquecer e perdoar. O tempo passava
pelo mendigo como pelo Presidente da República, pela pecadora e pela
mulher casta. Tomava as coisas pequenas e insignificantes, porque só
o tempo que passa é grande e sublime. O que eram todo o bulício da
vida, toda a agitação quando comparados com o tempo altaneiro, que
não quer saber se um homem é um homem ou um basbaque, que é
indiferente a quem busca a justiça e a bondade? Simon gostava muito
desta passagem sussurrada das estações do ano sobre a sua cabeça,
e quando certo dia começou a nevar na viela escura e sombria,
alegrou-se ao ver o progresso da natureza eterna e consoladora. «A
natureza neva, chegou o Inverno, e eu que pensava, feito tonto, que
já não chegava ao Inverno», pensou ele. Parecia-lhe um conto de
fadas: «Era uma vez muitos flocos de neve que voavam e caíam sobre
a terra porque não tinham nada de melhor para fazer. Muitos voavam
para o campo e aí se deixavam ficar, outros caíam sobre os telhados
e aí se deixavam ficar, outros ainda e mais outros caíam sobre os
chapéus e os gorros de pessoas que passavam apressadas e aí se
deixavam ficar até serem sacudidos, outros tantos caíam sobre o
focinho amável e fiel de um cavalo atrelado a um coche e deixavam-se
ficar nas longas pestanas dos olhos do animal, um floco de neve voou
por uma janela adentro, mas o que aí foi fazer o conto não conta,
em todo o caso, aí se deixou ficar. Na rua neva, na floresta lá em
cima neva, oh, como deve estar bonita a floresta agora. Podia lá ir.
Com sorte vai nevar até ao pôr-do-sol, quando se começa a acender
os lampiões. Era uma vez um homem que era todo negro, e este homem
queria lavar-se mas não tinha água nem sabão. Quando viu que
estava a nevar, saiu para a rua e lavou-se com a água da neve até
que ficou com a cara branca como a neve. Agora já se podia gabar, e
foi o que fez. Mas ficou com tosse e agora não parava de tossir,
teve de tossir um ano inteiro, o pobre homem, até ao Inverno
seguinte. Quando chegou outra vez o Inverno, subiu a montanha, e até
já transpirava, mas continuava sempre a tossir. A tosse não queria
parar. Foi então que uma criança pequena se aproximou dele, era uma
mendiga e tinha um floco de neve na mão, e o floco de neve parecia
uma pequena flor delicada. "Come o floco de neve", disse a
criança. E agora o homem alto comia o floco de neve e a tosse
desaparecia. Nesse momento, também desaparecia o sol e tudo caía na
escuridão. A criança mendiga estava sentada na neve e no entanto
não enregelava. Em casa tinham-lhe batido, mas ela não sabia
porquê. Era uma criança pequena e ainda não sabia nada. Os
pezinhos dela também não enregelavam e no entanto estavam
descalços. Nos olhos da criança brilhava uma lágrima, mas os olhos
ainda não eram sabedores o suficiente para saberem que estavam a
chorar. Durante a noite, a criança talvez tenha enregelado, mas não
sentiu nada, não sentiu mesmo nada, era demasiado pequena para
sentir. Deus viu a criança mas não se comoveu, era demasiado grande
para sentir.»
Robert Walser, Os Irmãos Tanner
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