quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Chegou o Inverno. Notável: o tempo passava por cima de todos os bons princípios como por cima de todas as falhas que não se consegue domar. Havia nesta passagem do tempo uma beleza que fazia esquecer e perdoar. O tempo passava pelo mendigo como pelo Presidente da República, pela pecadora e pela mulher casta. Tomava as coisas pequenas e insignificantes, porque só o tempo que passa é grande e sublime. O que eram todo o bulício da vida, toda a agitação quando comparados com o tempo altaneiro, que não quer saber se um homem é um homem ou um basbaque, que é indiferente a quem busca a justiça e a bondade? Simon gostava muito desta passagem sussurrada das estações do ano sobre a sua cabeça, e quando certo dia começou a nevar na viela escura e sombria, alegrou-se ao ver o progresso da natureza eterna e consoladora. «A natureza neva, chegou o Inverno, e eu que pensava, feito tonto, que já não chegava ao Inverno», pensou ele. Parecia-lhe um conto de fadas: «Era uma vez muitos flocos de neve que voavam e caíam sobre a terra porque não tinham nada de melhor para fazer. Muitos voavam para o campo e aí se deixavam ficar, outros caíam sobre os telhados e aí se deixavam ficar, outros ainda e mais outros caíam sobre os chapéus e os gorros de pessoas que passavam apressadas e aí se deixavam ficar até serem sacudidos, outros tantos caíam sobre o focinho amável e fiel de um cavalo atrelado a um coche e deixavam-se ficar nas longas pestanas dos olhos do animal, um floco de neve voou por uma janela adentro, mas o que aí foi fazer o conto não conta, em todo o caso, aí se deixou ficar. Na rua neva, na floresta lá em cima neva, oh, como deve estar bonita a floresta agora. Podia lá ir. Com sorte vai nevar até ao pôr-do-sol, quando se começa a acender os lampiões. Era uma vez um homem que era todo negro, e este homem queria lavar-se mas não tinha água nem sabão. Quando viu que estava a nevar, saiu para a rua e lavou-se com a água da neve até que ficou com a cara branca como a neve. Agora já se podia gabar, e foi o que fez. Mas ficou com tosse e agora não parava de tossir, teve de tossir um ano inteiro, o pobre homem, até ao Inverno seguinte. Quando chegou outra vez o Inverno, subiu a montanha, e até já transpirava, mas continuava sempre a tossir. A tosse não queria parar. Foi então que uma criança pequena se aproximou dele, era uma mendiga e tinha um floco de neve na mão, e o floco de neve parecia uma pequena flor delicada. "Come o floco de neve", disse a criança. E agora o homem alto comia o floco de neve e a tosse desaparecia. Nesse momento, também desaparecia o sol e tudo caía na escuridão. A criança mendiga estava sentada na neve e no entanto não enregelava. Em casa tinham-lhe batido, mas ela não sabia porquê. Era uma criança pequena e ainda não sabia nada. Os pezinhos dela também não enregelavam e no entanto estavam descalços. Nos olhos da criança brilhava uma lágrima, mas os olhos ainda não eram sabedores o suficiente para saberem que estavam a chorar. Durante a noite, a criança talvez tenha enregelado, mas não sentiu nada, não sentiu mesmo nada, era demasiado pequena para sentir. Deus viu a criança mas não se comoveu, era demasiado grande para sentir.» 
Robert  Walser, Os Irmãos Tanner

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