segunda-feira, 15 de outubro de 2012


«E o senhor o que faz?»
«Sou um homem à parte no meu próprio país», respondeu Simon, «na verdade sou escrevente, e pode bem imaginar a importância que tenho na minha pátria, onde um escrevente ocupa o último lugar na hierarquia das classes. Outros empregados de comércio fazem longas viagens ao estrangeiro para se educarem e depois regressam cheios de conhecimentos ao seu país, onde lhes são oferecidos cargos de grande prestígio. Quanto a mim, saiba o senhor que não saio daqui. É como se tivesse medo de que outros países não tivessem sol ou tivessem um sol inferior. Estou como que preso a esta terra e vejo sempre uma novidade no familiar, daí a minha relutância em partir. Aqui arruíno-me, bem vejo, e no entanto parece que, para conseguir viver, tenho de respirar debaixo do céu do meu país. Sou pouco respeitado, como é evidente, passo por ridículo, mas isso é-me indiferente, completamente indiferente. Fico e sem dúvida que continuarei a ficar. É tão doce ficar. A natureza acaso parte para o estrangeiro? Acaso emigram as árvores para encontrarem folhagem mais verde noutros lados e para depois voltarem e exibirem-se? Os rios e as nuvens partem, mas é uma partida diferente, mais profunda, uma partida sem regresso. E também não é exactamente uma partida, mas um repouso que voa ou que flui. Partir assim é bonito, parece-me! Vejo as árvores e penso: se elas não partem, porque não hei-de eu ficar também? Quando estou numa cidade no Inverno, tenho vontade de a ver também na Primavera, ou de ver uma árvore no Inverno e depois na Primavera, quando espalha as suas primeiras folhas. Depois da Primavera chega sempre o Verão, inexplicavelmente bonito e leve, como uma grande onda, verde e ardente que se levantasse do abismo do mundo, e eu quero usufruir do Verão aqui, percebe, aqui onde vi a Primavera a florir. Por exemplo, este pequeno prado ou relvado. Como é doce vê-lo no princípio da Primavera, quando a neve começa a derreter ao sol. Mas é desta árvore, deste relvado e deste mundo que se trata: acho que noutros lados nem sequer repararia no Verão. A questão é esta: tenho uma vontade diabólica de ficar aqui neste pequeno canto e posso enumerar uma série de razões desagradáveis que me impedem de viajar para o estrangeiro. Por exemplo: teria eu dinheiro para viajar? Como o senhor sabe, é preciso ter dinheiro para viajar de barco ou de comboio. Ora, eu ainda tenho dinheiro para cerca de vinte refeições, mas não para viajar. E fico contente por não ter. Os outros que viajem e que regressem mais instruídos. Sou instruído o suficiente para um dia ter uma morte digna aqui neste país.»
Após um breve momento de silêncio, enquanto o enfermeiro o fitava fixamente, Simon prosseguiu:
«E, além disso, também não vejo interesse em fazer carreira. O que para os outros é o mais importante, a mim não me diz nada. Não consigo ver a importância de fazer carreira, sabe Deus. Gosto de viver, mas não gosto de ter um curso de vida previamente determinado, ainda que me digam que há grandeza nisso. Que grandeza pode haver em ter as costas curvadas de tanto rabiscar numa escrivaninha demasiado pequena, em ter mãos enrugadas, uma cara macilenta, calças puídas, pernas trémulas, uma pança, um estômago dispéptico, uma careca lisa, olhos zangados, recriminadores, baços, mortiços e sem brilho, uma testa franzida e a consciência de ser um pateta cumpridor dos seus deveres? Não, obrigado! Prefiro ser pobre mas saudável, renuncio a uma vivenda em favor de um quarto barato, mesmo que ele dê para um beco escuro, prefiro ter embaraços financeiros a cair no embaraço de decidir aonde hei-de viajar no Verão para restabelecer a minha saúde arruinada, é certo que sou respeitado por uma pessoa apenas, a saber, eu próprio, mas é este o respeito que mais me importa, sou livre e, sempre que a necessidade o exige, posso vender a minha liberdade por certo tempo, para depois ser livre outra vez. Vale a pena ser pobre em nome da liberdade. Não me falta o que comer, porque tenho o talento de me saciar com pouco. Perco as estribeiras quando alguém me fala em "ter estatuto" e tenta assim incutir-me juízo. Quero continuar a ser uma pessoa. Numa palavra: gosto do perigo, do abismo, do incerto, do incontrolável!
Robert  Walser, Os Irmãos Tanner

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