quinta-feira, 25 de outubro de 2012


«Em que pensava eu? - perguntou Nekliudov a si mesmo depois destas mudanças na natureza, quando o comboio rolava por entre dois declives. - Ah, sim! Que todos estes homens, o director, os soldados da leva, todos esses funcionários são em geral boas pessoas que se tomam más apenas devido às funções que exercem.»
Recordou a indiferença de Maslenikov ao tomar conhecimento do que acontecia na prisão, a severidade do director e a crueldade do oficial da escolta que não permitiu aos presos treparem para os carros nem fez caso da mulher que dava à luz no comboio. «Estes homens são invulneráveis e impermeáveis ao mais elementar sentimento de compaixão, exactamente porque se limitam à sua obrigação de funcionários. Eles são impermeáveis aos sentimentos humanitários tal como esta terra pedregosa o é à chuva - pensou olhando o declive coberto de pedras multicores pela qual a água corria em cascata. - Talvez tenha sido preciso cobrir de pedras estes declives, mas resulta triste ver privada de vegetação uma terra que poderia produzir trigo, erva, arbustos e árvores iguais aos que se vêem ali em cima. Acontece a mesma coisa com os homens. Talvez sejam necessários estes governadores, estes directores, estes guardas; mas é terrível ver que estão privados da qualidade fundamental do ser humano: o amor e a piedade pelos seus semelhantes.»
«Deve-se tudo isto - continuou Nekliudov a pensar - a estas pessoas reconhecerem como lei o que não é lei nenhuma, e não aceitam, em troca, a lei eterna, imutável e permanente que Deus gravou no coração dos homens. (...).»
«Se encararmos o problema psicológico seguinte: como fazer para que uns homens cristãos e humanitários ou, simplesmente, uns homens bons da nossa época possam cometer as maiores atrocidades sem se sentirem culpados? Veremos que só existe uma solução. Torna-se necessário que a ordem de coisas seja precisamente a da actualidade, isto é, que, em primeiro lugar, estes governadores, directores, oficiais, policias, etc., creiam que existe uma coisa chamada serviço de Estado, mediante a qual é possível tratar os homens como se fossem meros objectos, sem sentimento humanitário ou fraternal, e, em segundo lugar, que estejam vinculados uns aos outros pelas funções de Estado de tal modo que a responsabilidade das consequências dos seus actos não recaia nunca sobre uma pessoa isolada. Unicamente nestas condições é possível que, na nossa época, se cometam crueldades como as que hoje presenciei. Tudo se baseia na convicção de que há circunstâncias nas quais se pode tratar os seres humanos sem amor, quando afinal tais circunstâncias não existem. Podemos cortar árvores, fabricar azulejos, forjar ferro sem amor. Mas é preciso tratar com amor os seres humanos, tal como se deve usar de precaução com as abelhas, porque de contrário prejudicamo-las a elas e prejudicamo-nos a nós próprios. Não pode ser de outro modo, pois o amor reciproco dos seres humanos é a lei fundamental da vida. Sem dúvida, um homem não pode ser obrigado a amar como pode ser obrigado a trabalhar, mas isto não é razão para tratar mal os seus semelhantes, sobretudo se se lhes exige qualquer coisa. Se não sentes afeição pelos homens, então trata do que quiseres, mas nunca deles - pensou Nekliudov. - Os alimentos dispõem bem apenas quando se come com apetite, e o trato com os homens é proveitoso exclusivaamente quando se sente afeição por eles. Se nos permitimos tratá-los sem amor, como ontem fiz com o meu cunhado, não existem limites de crueldade ou de selvajaria em relação aos outros homens, conforme vi hoje, nem tão-pouco há limites de sofrimento para nós mesmos, conforme pude compreender por causa da minha vida. Sim, sim, é isto. Está certo; está certo », repetiu, experimentando uma dupla satisfação, motivada pelo ar fresco após a onda de calor sufocante e pela sensação de haver descoberto uma solução clarificadora para um problema que o preocupava havia muito tempo.
Leon Tolstoi, Ressurreição 

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