quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Não sei por que razão me impressionou nessa altura, mais do que em qualquer outra ocasião, o estranho ar de sociabilidade consanguínea e familiaridade que dá forma a grande parte do carácter de Veneza. Sem verdadeiras ruas nem veículos, sem o alvoroço das rodas e a brutalidade dos cavalos, com estreitos caminhos tortuosos onde as pessoas se acumulam, onde as vozes soam como nos corredores de uma casa, onde as criaturas humanas circulam a pé como se contornassem os ângulos de uma mobília e onde os sapatos nunca se gastam, o lugar tem o carácter de um imenso apartamento colectivo onde a Piazza San Marco constitui o mais ornamentado dos seus recantos e onde o que resta, palácios e igrejas, desempenha o papel dos grandes sofás de repouso, das mesas de jogo, das áreas de decoração. E esta vulgar e esplêndida casa de habitação familiar, doméstica e sonora, de certa maneira parece também um teatro com tresmalhadas procissões de actores que fazem soar nas pontes os seus pés e percorrem a estrutura que a sustenta. Se nos sentarmos numa gôndola, os passeios que em determinados pontos ladeiam os canais assumem ao nosso olhar a importância de um palco porque se apresentam sob um ângulo idêntico e porque as figuras venezianas, que andam de um lado para o outro contra o cenário muito gasto das suas pequenas casas de comédia, surgem como membros de um infindável grupo dramático.
Henry James, Os Manuscritos de Aspern


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