Não sei por que razão me
impressionou nessa altura, mais do que em qualquer outra ocasião, o
estranho ar de sociabilidade consanguínea e familiaridade que dá
forma a grande parte do carácter de Veneza. Sem verdadeiras ruas nem
veículos, sem o alvoroço das rodas e a brutalidade dos cavalos, com
estreitos caminhos tortuosos onde as pessoas se acumulam, onde as
vozes soam como nos corredores de uma casa, onde as criaturas humanas
circulam a pé como se contornassem os ângulos de uma mobília e
onde os sapatos nunca se gastam, o lugar tem o carácter de um imenso
apartamento colectivo onde a Piazza San Marco constitui o mais
ornamentado dos seus recantos e onde o que resta, palácios e
igrejas, desempenha o papel dos grandes sofás de repouso, das mesas
de jogo, das áreas de decoração. E esta vulgar e esplêndida casa
de habitação familiar, doméstica e sonora, de certa maneira parece
também um teatro com tresmalhadas procissões de actores que fazem
soar nas pontes os seus pés e percorrem a estrutura que a sustenta.
Se nos sentarmos numa gôndola, os passeios que em determinados
pontos ladeiam os canais assumem ao nosso olhar a importância de um
palco porque se apresentam sob um ângulo idêntico e porque as
figuras venezianas, que andam de um lado para o outro contra o
cenário muito gasto das suas pequenas casas de comédia, surgem como
membros de um infindável grupo dramático.
Henry James, Os Manuscritos de Aspern
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