A nossa vida passa-se
entre o recanto do fogo e o espectáculo da janela aberta sobre o
campo. Por detrás dos vidros embaciados vê-se o vale submerso e
sobre os declives dos montes passam lentamente uns farrapos de névoa
azulada e fina. Sob a janela vê-se uma pequena horta com aquele
toque de petulância graciosa que a ordem dá às hortas. Vêem-se
umas couves tronchudas, a couve-flor com uns brancos de Tiepolo, a
salsa esbelta e os celestiais alhos-porros. A chuva deixa umas gotas
brilhantes sobre estes belos alimentos vegetais. Para lá dos muros
baixos da horta há um prado minúsculo com vacas e um bezerrito. A
vaca pasta com uma placidez grandiosa. O bezerro salta e brinca sobre
a erva húmida e tenra. Mais adiante, da chaminé de uma moradia,
desenhando-se no ar espesso, sai um fio de fumo sonolento e
entrevê-se um monte de maçarocas de milho sobre a varanda de
madeira. Pela estrada passa um carro de bois. O rumor surdo do rio,
distante e presente, galgando as pedras, dá à placidez do campo um
toque de mistério.
Quando a chuva se dissipa
um pouco, pode-se ir dar uma volta. O vale estreita-se, alarga-se,
segue o capricho da curva do rio - a curva da enguia e da truta. Tudo
é outonal e as coisas parecem ter uma espécie de cansaço e de
abandono interior. As encostas dos montes apresentam um brilho
moribundo de cinzas. As árvores - castanheiros, azinheiras,
carvalhos, faias - ainda têm as folhas mortas pendentes. Já por
poucos dias ... Uma geada, e o mundo vegetal transformar-se-á numa
caligrafia de ramos secos. É o momento das cores incendiadas,
douradas, quentes - verdete, dourado, vinagre - e o momento de a
paisagem ser tocada pela teia de aranha subtil e azulada da neblina.
É agradável andar pelo
campo com este tempo. A atmosfera húmida tem uma grande riqueza de
matizes: azuis fugitivos, águas verdes com um ligeiro tom rosado,
irisado, com um toque de carmim. Sente-se na cara a névoa fresca e
suave das telas de Renoir. A lonjura esfuma-se vagamente. Os farrapos
de neblina avançam nas alturas com absoluta indiferença. Ao passar
a neblina surge um pico, um monte distante, uma moradia remota
perdida entre o verde de um prado inclinado e um bosque amarelecido.
Por vezes aparece sobre um declive um rebanho de cordeiros brancos,
como figurinhas de uma Belém pueril. Vistas do vale, mergulhado numa
paz profunda, um pouco bovina, sobre a qual balançam muito
ligeiramente as silhuetas dos choupos, estas aparições e
desaparições do jogo da névoa constituem uma diversão ligeira e
infantil.
O vale e os seus declives
estão salpicados de moradias.
Dentro da relatividade do
país - penso eu -, estas casas velhas, fortes e nobres poderiam ser
confortáveis. Não consigo contemplá-las sem imaginar as grandes
cozinhas que devem conter, com os seus enormes fogões, a sua grande
chaminé de campanha, as suas volumosas vigas no tecto, o esplendor
do fogo nas marmitas, a grande mesa patriarcal, os cães adormecidos
no chão e os odores saborosos de uma cozinha arcaica, sólida e
convincente. Em contraste com a perenidade destas casas, destas
cozinhas - pensamos -, quão ridículos, quão amargos se revelam os
nossos incessantes, os nossos histéricos, os nossos insensatos
movimentos! Aquele nível de ataraxia e de serenidade que procuramos
tão afanosamente na vida, e que com a vida se vai distanciando de
nós, não estará talvez no meridiano destas casas, destas cozinhas
antigas a partir das quais se vê, por uma janela, o cata-vento
imóvel do campanário e, pela outra, os ciprestes dos cemitérios?
Recomeça a chover com uma
mansidão doce, com uma espécie de resignação universal. Está na
hora de voltar para casa. Anoitece e as formas das coisas parecem
adormecer na imprecisão do crepúsculo ... Percebe-se sobre o rumor
surdo do rio o ruído linear e cristalino de um fiozinho de água na
valeta da estrada. Na semiobscuridade acende-se de imediato uma
mancha de luz fulva e desmaiada na janela de uma moradia. Os
camponeses acercam-se das portas. O sino deixa cair um angelus opaco
que se dilui no ar espesso com uma voluptuosa melancolia. O passo
lento de uns tamancos ... A paz do vale mergulhado na chuva
envolve-nos como uma manta intangível e densa.
Josep Pla, Viagem de Autocarro
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