segunda-feira, 1 de outubro de 2012


Quando desta vez cruzei a ponte estava uma ave negra pousada na balaustrada, uma gralha de muito pequena estatura, e como não fugiu quando eu me aproximei, avancei furtivamente na sua direcção, pé ante pé; ela não mostrou medo nem sequer desconfiança, apenas atenção e curiosidade, permitiu que eu me aproximasse até meio passo de distância, observou-me com olhos atentos de ave e pôs a empoeirada cabeça cinzenta de lado, como se quisesse dizer «Então, meu velho, estás espantado?» E de facto estava. Esta gralha estava habituada ao convívio com seres humanos, era possível falar com ela e nesse mesmo instante passaram duas pessoas que a saudaram dizendo «Viva, Jacob». Fui interrogá-las e desde então já obtive algumas informações sobre o Jacob, que no entanto variam muito entre si. A questão principal ficou sem resposta: onde é que o pássaro vivia e como é que chegara a esta confiança connosco, humanos.(...)
Depois disso encontrei a gralha Jacob quase todos os dias, umas vezes sozinho, outras vezes com a minha mulher, saudei a ave e conversei com ela.(...)
Tive-o muitas vezes pousado no braço ou ao ombro, muitas vezes me bicou o casaco e o colarinho, na face e na nuca, e muitas vezes me esfarrapou a aba do chapéu. Não aprecia pão, mas fica ciumento e verdadeiramente furioso quando o atiramos às gaivotas na sua presença. Aceita nozes ou amendoins e debica-os habilmente na mão de quem os oferece. Mas o que ele prefere é bicar, puxar, esmigalhar e destruir qualquer coisa, apoia-se num pé e bate rápido e impaciente com o bico num pedaço de papel amachucado, um folheto, um pedaço de cartão ou de tecido. E mais uma vez apercebemo-nos que tudo isto acontece não apenas pela sua vontade, mas também para benefício dos espectadores, pois ele tem sempre um (e muitas vezes mais) à sua volta. Saltita no chão à frente deles ou na balaustrada da ponte, para trás e para a frente, satisfeito com a plateia, bate com a asa na cabeça ou no ombro de um dos espectadores, volta para o chão, estuda os nossos sapatos e debica-os meticulosamente.(...)
Não tem qualquer medo das gaivotas, duas vezes maiores e muito mais fortes do que ele; por vezes levanta voo para o meio delas. E elas não lhe fazem mal. Desde logo ele quase não toca no pão e por isso não é um rival nem estraga as suas brincadeiras; para além disso, desconfio que também para elas ele é um fenómeno, algo de raro, misterioso e um pouco assustador. Está sozinho, não pertence a nenhum povo, não obedece a nenhuns costumes, nenhumas ordens, nenhumas leis; abandonou o povo das gralhas, onde era um entre muitos, e voltou-se para o povo dos humanos, que o observa com espanto e lhe oferece coisas, a quem ele serve de palhaço e de equilibrista quando lhe apetece, de quem ele troça e de cuja admiração nunca se cansa. Negro, atrevido e solitário, senta-se no meio das gaivotas claras e das pessoas coloridas, o único da sua espécie, apátrida por destino ou por opção; fica sentado, de olhar audacioso e atento, observando a ponte, e fica satisfeito por ver que poucos são os que passam sem lhe prestar atenção, que a maioria se detém uns momentos, e muitas vezes longos momentos, que o observam espantados, que se sentem intrigados, que lhe chamam Jacob e que só após muitas hesitações se decidem a prosseguir. Não leva as pessoas a sério, como convém a uma gralha, e no entanto não parece conseguir passar sem elas. (...) Conhecia bem o seu lugar, o seu poder sobre nós, grandes animais gordos, a sua singularidade e predestinação no meio dum povo estranho e inábil, e gostava de ser acrobata e actor quando se via completamente rodeado de gigantes que o admiravam, comovidos ou sorridentes. Pelo menos comigo tinha conseguido que eu gostasse dele e que ficasse desiludido e triste quando vinha visitá-lo e não o encontrava. Interessava-me mais por ele do que pela maioria dos meus concidadãos. E embora estimasse muito as gaivotas e amasse os seus sinais de vida belos, selvagens e poderosos, quando estava rodeado por elas não eram indivíduos, eram um povo, uma multidão, e mesmo que olhasse com atenção e pudesse ver e admirar uma delas como um ser individualizado, nunca mais a reconheceria assim que ela saísse do meu campo de visão.
Nunca descobrirei onde e de que modo o Jacob se desligou do seu povo e da segurança do seu anonimato, se foi ele quem escolheu o seu destino invulgar e tão trágico quanto brilhante ou se este lhe foi imposto. Provavelmente foi este último.
(...)
Transformou-se naquilo que era hoje: o favorito de um vasto público, desejado sedutor, principalmente de damas e cavalheiros idosos, sentindo pelas pessoas tanta amizade quanto desprezo, artista solitário sobre o palco, mensageiro de um mundo distante e desconhecido dos gigantes gordos, palhaço para uns, presságio sinistro para outros, escarnecido, aplaudido, amado, admirado, lamentado, um espectáculo para todos, um problema para os pensadores.
Nós, pensadores - pois sem dúvida existem muitos outros, para além de mim -, não dirigíamos os nossos pensamentos e conjecturas, a nossa propensão para o conhecimento e para a efabulação apenas para a misteriosa origem e passado do Jacob. A sua aparência excitava a imaginação e constrangia-nos a pensar igualmente no seu futuro. E nós fazíamo-lo hesitantes e com uma sensação de resistência e de tristeza; pois o presumível e provável fim deste nosso favorito seria violento. Por muito que tentássemos imaginar para ele uma morte natural e pacífica, (...) todas as probabilidades estavam contra isso. Um animal saído da liberdade, dos espaços abertos e da segurança para o convívio e a confraternização com as pessoas e a civilização pode ser capaz de se adaptar a esse ambiente estranho, pode ter o génio para apreender todas as vantagens da sua singular posição, todavia essa posição esconde tantos inumeráveis perigos que lhe será difícil escapar-lhes. Uma pessoa estremece quando começa a imaginar esses terríveis perigos, desde a corrente eléctrica até à prisão num quarto com um cão ou um gato ou à possibilidade de ser apanhado e torturado por rapazes maus.
Há relatos de povos antigos que todos os anos elegiam ou escolhiam à sorte um rei. Então um jovem belo, anónimo e pobre, talvez um escravo, era repentinamente vestido com roupas luxuosas e elevado à condição de rei, era recebido em palácios ou tendas reais; o eleito era confrontado com criados ao seu serviço, belas mulheres, cozinhas, adegas, estábulos reais e orquestra, todas as maravilhas da realeza, poder, riqueza e luxo. E assim o novo soberano vivia dias de alegria, semanas, meses, até se ter passado um ano. Depois era amarrado, levado ao local de execução e morto.
Pensei várias vezes nesta história que tinha lido uma vez, há décadas, e cuja veracidade nunca pude nem desejei testar, esta história cintilante e sinistra, bela e funérea, sempre que observava o Jacob a debicar amendoins nas mãos de uma dama, censurando uma criança demasiado desajeitada com um gesto do bico, interessado na minha tagarelice de papagaio e escutando-a com devoção ou apanhando uma bola de papel atirada por um espectador encantado, segurando-a com as garras de uma pata enquanto a cabeça determinada e a cinzenta plumagem arrepiada da cabeça pareciam demonstrar, ao mesmo tempo, ira e prazer. (1951)
Hermann Hesse, A Gralha, em Noite no Lago

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