Quando desta vez cruzei a
ponte estava uma ave negra pousada na balaustrada, uma gralha de
muito pequena estatura, e como não fugiu quando eu me aproximei,
avancei furtivamente na sua direcção, pé ante pé; ela não
mostrou medo nem sequer desconfiança, apenas atenção e
curiosidade, permitiu que eu me aproximasse até meio passo de
distância, observou-me com olhos atentos de ave e pôs a empoeirada
cabeça cinzenta de lado, como se quisesse dizer «Então, meu velho,
estás espantado?» E de facto estava. Esta gralha estava habituada
ao convívio com seres humanos, era possível falar com ela e nesse
mesmo instante passaram duas pessoas que a saudaram dizendo «Viva,
Jacob». Fui interrogá-las e desde então já obtive algumas
informações sobre o Jacob, que no entanto variam muito entre si. A
questão principal ficou sem resposta: onde é que o pássaro vivia e
como é que chegara a esta confiança connosco, humanos.(...)
Depois disso encontrei a
gralha Jacob quase todos os dias, umas vezes sozinho, outras vezes
com a minha mulher, saudei a ave e conversei com ela.(...)
Tive-o
muitas vezes pousado no braço ou ao ombro, muitas vezes me bicou o
casaco e o colarinho, na face e na nuca, e muitas vezes me esfarrapou
a aba do chapéu. Não aprecia pão, mas fica ciumento e
verdadeiramente furioso quando o atiramos às gaivotas na sua
presença. Aceita nozes ou amendoins e debica-os habilmente na mão
de quem os oferece. Mas o que ele prefere é bicar, puxar, esmigalhar
e destruir qualquer coisa, apoia-se num pé e bate rápido e
impaciente com o bico num pedaço de papel amachucado, um folheto, um
pedaço de cartão ou de tecido. E mais uma vez apercebemo-nos que
tudo isto acontece não apenas pela sua vontade, mas também para
benefício dos espectadores, pois ele tem sempre um (e muitas vezes
mais) à sua volta. Saltita no chão à frente deles ou na
balaustrada da ponte, para trás e para a frente, satisfeito com a
plateia, bate com a asa na cabeça ou no ombro de um dos
espectadores, volta para o chão, estuda os nossos sapatos e
debica-os meticulosamente.(...)
Não tem qualquer medo das
gaivotas, duas vezes maiores e muito mais fortes do que ele; por
vezes levanta voo para o meio delas. E elas não lhe fazem mal. Desde
logo ele quase não toca no pão e por isso não é um rival nem
estraga as suas brincadeiras; para além disso, desconfio que também
para elas ele é um fenómeno, algo de raro, misterioso e um pouco
assustador. Está sozinho, não pertence a nenhum povo, não obedece
a nenhuns costumes, nenhumas ordens, nenhumas leis; abandonou o povo
das gralhas, onde era um entre muitos, e voltou-se para o povo dos
humanos, que o observa com espanto e lhe oferece coisas, a quem ele
serve de palhaço e de equilibrista quando lhe apetece, de quem ele
troça e de cuja admiração nunca se cansa. Negro, atrevido e
solitário, senta-se no meio das gaivotas claras e das pessoas
coloridas, o único da sua espécie, apátrida por destino ou por
opção; fica sentado, de olhar audacioso e atento, observando a
ponte, e fica satisfeito por ver que poucos são os que passam sem
lhe prestar atenção, que a maioria se detém uns momentos, e muitas
vezes longos momentos, que o observam espantados, que se sentem
intrigados, que lhe chamam Jacob e que só após muitas hesitações
se decidem a prosseguir. Não leva as pessoas a sério, como convém
a uma gralha, e no entanto não parece conseguir passar sem elas. (...) Conhecia bem o seu lugar,
o seu poder sobre nós, grandes animais gordos, a sua singularidade e
predestinação no meio dum povo estranho e inábil, e gostava de ser
acrobata e actor quando se via completamente rodeado de gigantes que
o admiravam, comovidos ou sorridentes. Pelo menos comigo tinha
conseguido que eu gostasse dele e que ficasse desiludido e triste
quando vinha visitá-lo e não o encontrava. Interessava-me mais por
ele do que pela maioria dos meus concidadãos. E embora estimasse
muito as gaivotas e amasse os seus sinais de vida belos, selvagens e
poderosos, quando estava rodeado por elas não eram indivíduos, eram
um povo, uma multidão, e mesmo que olhasse com atenção e pudesse
ver e admirar uma delas como um ser individualizado, nunca mais a
reconheceria assim que ela saísse do meu campo de visão.
Nunca descobrirei onde e
de que modo o Jacob se desligou do seu povo e da segurança do seu
anonimato, se foi ele quem escolheu o seu destino invulgar e tão
trágico quanto brilhante ou se este lhe foi imposto. Provavelmente
foi este último.
(...)
Transformou-se naquilo
que era hoje: o favorito de um vasto público, desejado sedutor,
principalmente de damas e cavalheiros idosos, sentindo pelas pessoas
tanta amizade quanto desprezo, artista solitário sobre o palco,
mensageiro de um mundo distante e desconhecido dos gigantes gordos,
palhaço para uns, presságio sinistro para outros, escarnecido,
aplaudido, amado, admirado, lamentado, um espectáculo para todos, um
problema para os pensadores.
Nós, pensadores - pois
sem dúvida existem muitos outros, para além de mim -, não
dirigíamos os nossos pensamentos e conjecturas, a nossa propensão
para o conhecimento e para a efabulação apenas para a misteriosa
origem e passado do Jacob. A sua aparência excitava a imaginação e
constrangia-nos a pensar igualmente no seu futuro. E nós fazíamo-lo
hesitantes e com uma sensação de resistência e de tristeza; pois o
presumível e provável fim deste nosso favorito seria violento. Por
muito que tentássemos imaginar para ele uma morte natural e
pacífica, (...) todas as probabilidades estavam
contra isso. Um animal saído da liberdade, dos espaços abertos e da
segurança para o convívio e a confraternização com as pessoas e a
civilização pode ser capaz de se adaptar a esse ambiente estranho,
pode ter o génio para apreender todas as vantagens da sua singular
posição, todavia essa posição esconde tantos inumeráveis perigos
que lhe será difícil escapar-lhes. Uma pessoa estremece quando
começa a imaginar esses terríveis perigos, desde a corrente
eléctrica até à prisão num quarto com um cão ou um gato ou à
possibilidade de ser apanhado e torturado por rapazes maus.
Há relatos de povos
antigos que todos os anos elegiam ou escolhiam à sorte um rei. Então
um jovem belo, anónimo e pobre, talvez um escravo, era
repentinamente vestido com roupas luxuosas e elevado à condição de
rei, era recebido em palácios ou tendas reais; o eleito era
confrontado com criados ao seu serviço, belas mulheres, cozinhas,
adegas, estábulos reais e orquestra, todas as maravilhas da realeza,
poder, riqueza e luxo. E assim o novo soberano vivia dias de alegria,
semanas, meses, até se ter passado um ano. Depois era amarrado,
levado ao local de execução e morto.
Pensei várias vezes nesta
história que tinha lido uma vez, há décadas, e cuja veracidade
nunca pude nem desejei testar, esta história cintilante e sinistra,
bela e funérea, sempre que observava o Jacob a debicar amendoins nas
mãos de uma dama, censurando uma criança demasiado desajeitada com
um gesto do bico, interessado na minha tagarelice de papagaio e
escutando-a com devoção ou apanhando uma bola de papel atirada por
um espectador encantado, segurando-a com as garras de uma pata
enquanto a cabeça determinada e a cinzenta plumagem arrepiada da
cabeça pareciam demonstrar, ao mesmo tempo, ira e prazer. (1951)
Hermann Hesse, A Gralha, em Noite no Lago
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