Aconteceu-lhe o que
acontece amiúde às pessoas que têm uma intensa vida espiritual. O
pensamento que de início se lhe afigurava singular, como um
paradoxo, até como um gracejo, e que paulatinamente encontrava
afirmação na vida, apresentou-se-lhe de repente como uma verdade
simples e incontroversa. De repente viu de maneira clara que o único
meio para se salvar do terrível mal que fazia sofrer os seres
humanos consistia em que as pessoas se reconhecessem sempre culpadas
perante Deus e, por conseguinte, incapazes de castigar e de punir os
seus semelhantes. Ficou claro para ele que todo o mal que
testemunhara nas prisões, assim como a tranquila segurança dos que
o levavam a cabo, era devido a que os homens pretendiam fazer uma
coisa impossível: sendo maus, queriam corrigir o mal existente.
Homens viciosos queriam corrigir os vícios dos outros e imaginavam
que o conseguiriam por um meio mecânico. Ora o resultado era que
indivíduos cúpidos e interessados tinham chegado ao ponto de forjar
uma profissão que consistia em castigar e punir os seus semelhantes,
corrompendo-se eles e corrompendo as suas vítimas. Era agora claro
de onde provinha todo o horror que ele vira e o que devia fazer-se
para o aniquilar. A resposta que não pudera achar era a que Cristo
dera a S. Pedro: era preciso perdoar ao próximo um número infinito
de vezes, porque não há ninguém que não seja culpado e que,
portanto, possa castigar e punir os seus semelhantes.
«Não é possível que
seja tão simples» - pensou Nekliudov. No entanto, ainda que lhe
parecesse estranho por estar acostumado ao contrário, via agora
claramente que era esta a solução, e não apenas a teórica como
também a prática. Agora já não o preocupava a objecção de
sempre, que consistia em perguntar a si mesmo o que se devia fazer
com os malfeitores. Esta objecção teria sentido se estivesse
demonstrado que o castigo diminui os crimes e corrige os criminosos.
Mas a realidade demonstrava o contrário. A única coisa sensata era,
pois, que os homens deixassem de fazer o que faziam, posto que não
só era inútil como também nocivo, cruel e imoral. «Há já vários
séculos que castigais os homens que considerais criminosos. E qual o
resultado? Acaso os haveis suprimido? Nada disso; pelo contrário,
contribuiu-se para aumentar o seu número, tanto ao corromper os
criminosos por meio dos castigos, como ao juntar os delitos dos
juizes, dos delegados e dos carcereiros» - pensou Nekliudov,
compreendendo que a sociedade e a ordem social não são produtos dos
criminosos legais, que julgam e castigam os seus semelhantes, mas sim
do amor e da compaixão que reinam apesar da corrupção existente.
Com a esperança de
encontrar a confirmação desta ideia no Evangelho, Nekliudov começou
a lê-lo desde o inicio. Ao chegar ao Sermão da Montanha, que sempre
o emocionava, compreendeu pela primeira vez que os seus conceitos não
eram abstractos e, em grande parte, alheios a este mundo, mas, ao
invés, simples, claros e aplicáveis na prática. No caso de estes
preceitos serem cumpridos - o que era muito possível-
estabelecer-se-ia uma sociedade humana completamente diferente na
qual desapareceria a violência, que tanto indignava Nekliudov, e
alcançar-se-ia o maior bem da Humanidade, o reino dos Céus na
Terra.
Tais preceitos eram cinco:
O primeiro (S. Mateus, V,
21-26) consistia em que o homem não deve matar, nem mesmo irritar os
seus irmãos; se se zangar, deve reconciliar-se com o seu inimigo
antes de oferecer um sacrifício a Deus, isto é, antes de rezar.
O segundo (S. Mateus, V,
27-32), era que o homem não deve cometer adultérios nem cobiçar
uma mulher pela sua beleza, e uma vez casado deve permanecer fiel.
O terceiro (S. Mateus, V,
33-37), era que o homem não deve prometer nada por meio do
juramento.
O quarto (S. Mateus, V,
38-42), era que o homem não deve pagar olho por olho, mas sim
oferecer a outra face quando lhe baterem na direita; deve perdoar as
ofensas, suportá-las com resignação e não recusar nada do que os
seus semelhantes lhe pedirem.
O quinto (S. Mateus, V,
43-48), era que o homem não deve odiar os seus inimigos e lutar
contra eles, mas amá-los, ajudá-los e servi-los.
Nekliudov cravou os olhos
no candeeiro e afundou-se em reflexões. Pensando nas monstruosidades
da vida humana, imaginou vivamente o que poderia ser esta mesma vida
se os homens estivessem educados com base nestes preceitos, e a alma
embargou-se-lhe com um entusiasmo que não sentia havia muito tempo.
Era como se de repente encontrasse consolo e liberdade depois de um
largo período de fadiga e sofrimento.
(...)
Naquele momento não só
cria que ao cumprir estes preceitos os homens poderiam alcançar o
mais alto grau de felicidade, como estava também convencido de que
não têm outra obrigação senão cumpri-los. Nesses preceitos
residia o sentido da vida, pelo que desviar-se de tal cumprimento era
um erro que arrastava consigo o castigo. Esta conclusão
depreendia-se de todos os ensinamentos de Cristo, mas principalmente
da parábola dos vindimadores. Estes haviam imaginado que o horto que
lhes tinham mandado cultivar para o dono lhes pertencia; que quanto
havia nele era para eles e que não tinham mais obrigações senão a
de gozar a vida; haviam esquecido o dono e matavam quantos lhes
recordavam a sua existência e os deveres que tinham para com ele.
«Isto é o que nós
fazemos ao crer que somos donos da nossa vida e que esta nos foi dada
para nosso prazer. Isto é absurdo - pensou Nekliudov. - Se nos
mandaram para aqui, foi por vontade de alguém e por alguma razão.
Portanto, é natural que estejamos mal, como o estaria um trabalhador
que não cumpre a vontade do seu amo. A vontade do amo exprimem-na
aqueles preceitos. Se fossem cumpridos, estabelecer-se-ia o Reino dos
Céus na Terra, e os homens alcançariam a maior felicidade que é
possível alcançar.»
«Buscai o Reino dos Céus
e tudo o mais vos será dado por acrescentamento. Mas nós procuramos
o acrescentamento e é natural que não o encontremos.»
Leon Tolstoi, Ressureição
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