quinta-feira, 25 de outubro de 2012

- Será possível que não seja nada mais do que isto? - exclamou Nekliudov de súbito, em voz alta, ao ler estas palavras. E a voz interior do seu ser respondeu-lhe: «Sim, é isso apenas.»
Aconteceu-lhe o que acontece amiúde às pessoas que têm uma intensa vida espiritual. O pensamento que de início se lhe afigurava singular, como um paradoxo, até como um gracejo, e que paulatinamente encontrava afirmação na vida, apresentou-se-lhe de repente como uma verdade simples e incontroversa. De repente viu de maneira clara que o único meio para se salvar do terrível mal que fazia sofrer os seres humanos consistia em que as pessoas se reconhecessem sempre culpadas perante Deus e, por conseguinte, incapazes de castigar e de punir os seus semelhantes. Ficou claro para ele que todo o mal que testemunhara nas prisões, assim como a tranquila segurança dos que o levavam a cabo, era devido a que os homens pretendiam fazer uma coisa impossível: sendo maus, queriam corrigir o mal existente. Homens viciosos queriam corrigir os vícios dos outros e imaginavam que o conseguiriam por um meio mecânico. Ora o resultado era que indivíduos cúpidos e interessados tinham chegado ao ponto de forjar uma profissão que consistia em castigar e punir os seus semelhantes, corrompendo-se eles e corrompendo as suas vítimas. Era agora claro de onde provinha todo o horror que ele vira e o que devia fazer-se para o aniquilar. A resposta que não pudera achar era a que Cristo dera a S. Pedro: era preciso perdoar ao próximo um número infinito de vezes, porque não há ninguém que não seja culpado e que, portanto, possa castigar e punir os seus semelhantes.
«Não é possível que seja tão simples» - pensou Nekliudov. No entanto, ainda que lhe parecesse estranho por estar acostumado ao contrário, via agora claramente que era esta a solução, e não apenas a teórica como também a prática. Agora já não o preocupava a objecção de sempre, que consistia em perguntar a si mesmo o que se devia fazer com os malfeitores. Esta objecção teria sentido se estivesse demonstrado que o castigo diminui os crimes e corrige os criminosos. Mas a realidade demonstrava o contrário. A única coisa sensata era, pois, que os homens deixassem de fazer o que faziam, posto que não só era inútil como também nocivo, cruel e imoral. «Há já vários séculos que castigais os homens que considerais criminosos. E qual o resultado? Acaso os haveis suprimido? Nada disso; pelo contrário, contribuiu-se para aumentar o seu número, tanto ao corromper os criminosos por meio dos castigos, como ao juntar os delitos dos juizes, dos delegados e dos carcereiros» - pensou Nekliudov, compreendendo que a sociedade e a ordem social não são produtos dos criminosos legais, que julgam e castigam os seus semelhantes, mas sim do amor e da compaixão que reinam apesar da corrupção existente.
Com a esperança de encontrar a confirmação desta ideia no Evangelho, Nekliudov começou a lê-lo desde o inicio. Ao chegar ao Sermão da Montanha, que sempre o emocionava, compreendeu pela primeira vez que os seus conceitos não eram abstractos e, em grande parte, alheios a este mundo, mas, ao invés, simples, claros e aplicáveis na prática. No caso de estes preceitos serem cumpridos - o que era muito possível- estabelecer-se-ia uma sociedade humana completamente diferente na qual desapareceria a violência, que tanto indignava Nekliudov, e alcançar-se-ia o maior bem da Humanidade, o reino dos Céus na Terra.
Tais preceitos eram cinco:
O primeiro (S. Mateus, V, 21-26) consistia em que o homem não deve matar, nem mesmo irritar os seus irmãos; se se zangar, deve reconciliar-se com o seu inimigo antes de oferecer um sacrifício a Deus, isto é, antes de rezar.
O segundo (S. Mateus, V, 27-32), era que o homem não deve cometer adultérios nem cobiçar uma mulher pela sua beleza, e uma vez casado deve permanecer fiel.
O terceiro (S. Mateus, V, 33-37), era que o homem não deve prometer nada por meio do juramento.
O quarto (S. Mateus, V, 38-42), era que o homem não deve pagar olho por olho, mas sim oferecer a outra face quando lhe baterem na direita; deve perdoar as ofensas, suportá-las com resignação e não recusar nada do que os seus semelhantes lhe pedirem.
O quinto (S. Mateus, V, 43-48), era que o homem não deve odiar os seus inimigos e lutar contra eles, mas amá-los, ajudá-los e servi-los.
Nekliudov cravou os olhos no candeeiro e afundou-se em reflexões. Pensando nas monstruosidades da vida humana, imaginou vivamente o que poderia ser esta mesma vida se os homens estivessem educados com base nestes preceitos, e a alma embargou-se-lhe com um entusiasmo que não sentia havia muito tempo. Era como se de repente encontrasse consolo e liberdade depois de um largo período de fadiga e sofrimento.
(...)
Naquele momento não só cria que ao cumprir estes preceitos os homens poderiam alcançar o mais alto grau de felicidade, como estava também convencido de que não têm outra obrigação senão cumpri-los. Nesses preceitos residia o sentido da vida, pelo que desviar-se de tal cumprimento era um erro que arrastava consigo o castigo. Esta conclusão depreendia-se de todos os ensinamentos de Cristo, mas principalmente da parábola dos vindimadores. Estes haviam imaginado que o horto que lhes tinham mandado cultivar para o dono lhes pertencia; que quanto havia nele era para eles e que não tinham mais obrigações senão a de gozar a vida; haviam esquecido o dono e matavam quantos lhes recordavam a sua existência e os deveres que tinham para com ele.
«Isto é o que nós fazemos ao crer que somos donos da nossa vida e que esta nos foi dada para nosso prazer. Isto é absurdo - pensou Nekliudov. - Se nos mandaram para aqui, foi por vontade de alguém e por alguma razão. Portanto, é natural que estejamos mal, como o estaria um trabalhador que não cumpre a vontade do seu amo. A vontade do amo exprimem-na aqueles preceitos. Se fossem cumpridos, estabelecer-se-ia o Reino dos Céus na Terra, e os homens alcançariam a maior felicidade que é possível alcançar.»
«Buscai o Reino dos Céus e tudo o mais vos será dado por acrescentamento. Mas nós procuramos o acrescentamento e é natural que não o encontremos.»
Leon Tolstoi,  Ressureição

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