Fui uma criança serena,
com as rabugices próprias da idade, compreensiva, escrupulosa nos
seus actos, consciente das suas obrigações e extremamente sensível.
Todas estas qualidades (que não me proponho classificar de boas ou
de más) se mantiveram até hoje. Atravessei a existência sempre com
a surpresa nos olhos, a amargura no rosto, a tristeza no íntimo.
Nunca me consegui adaptar à sociedade em que me movimento, nunca fui
capaz de praticar uma injustiça (consciente, é claro), um abuso,
uma imposição, de recorrer a um sofisma, a um fingimento, a uma
falsidade de qualquer espécie. Sou uma pobre criatura. Sem ser
tímido (porque os tímidos são capazes de tudo e eu não sou) nunca
me senti à vontade em qualquer meio onde ingressasse. Felizmente
para mim nunca tal inadaptação me trouxe dificuldades de
convivência pois sempre lidei com toda a gente, desde o padeiro até
ao ministro, na melhor das cordialidades. E isto porque a minha
inadaptação é profundamente interior, sem reflexos externos. De
modo muito geral tenho a pior das impressões a respeito dos seres
humanos e nunca condescendi, por incapacidade natural, com a vileza
do procedimento habitual dos meus companheiros de existência. É-me
visceralmente impossível aceitar a violência gratuita, concretizada
sob todas as formas,) a sofreguidão dos desejos, a retórica dos
interesses, a inveja, a soberba, a iniquidade, os subterfúgios, as
manhas, as insinuações, as rasteiras, os atropelos. Esta imensa
riqueza negativa com que a humanidade se arma e se digladia no trato
e na acção permanentes, chega a causar-me inveja. Gostaria de ter
um mínimo de disposição para poisar a mão num ombro alheio com
indiferença ou cinismo. Infelizmente não sou capaz.
Rómulo de Carvalho, Memórias
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