sábado, 3 de novembro de 2012


Fui uma criança serena, com as rabugices próprias da idade, compreensiva, escrupulosa nos seus actos, consciente das suas obrigações e extremamente sensível. Todas estas qualidades (que não me proponho classificar de boas ou de más) se mantiveram até hoje. Atravessei a existência sempre com a surpresa nos olhos, a amargura no rosto, a tristeza no íntimo. Nunca me consegui adaptar à sociedade em que me movimento, nunca fui capaz de praticar uma injustiça (consciente, é claro), um abuso, uma imposição, de recorrer a um sofisma, a um fingimento, a uma falsidade de qualquer espécie. Sou uma pobre criatura. Sem ser tímido (porque os tímidos são capazes de tudo e eu não sou) nunca me senti à vontade em qualquer meio onde ingressasse. Felizmente para mim nunca tal inadaptação me trouxe dificuldades de convivência pois sempre lidei com toda a gente, desde o padeiro até ao ministro, na melhor das cordialidades. E isto porque a minha inadaptação é profundamente interior, sem reflexos externos. De modo muito geral tenho a pior das impressões a respeito dos seres humanos e nunca condescendi, por incapacidade natural, com a vileza do procedimento habitual dos meus companheiros de existência. É-me visceralmente impossível aceitar a violência gratuita, concretizada sob todas as formas,) a sofreguidão dos desejos, a retórica dos interesses, a inveja, a soberba, a iniquidade, os subterfúgios, as manhas, as insinuações, as rasteiras, os atropelos. Esta imensa riqueza negativa com que a humanidade se arma e se digladia no trato e na acção permanentes, chega a causar-me inveja. Gostaria de ter um mínimo de disposição para poisar a mão num ombro alheio com indiferença ou cinismo. Infelizmente não sou capaz. 
Rómulo de Carvalho, Memórias

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