sábado, 3 de novembro de 2012

Isto de fumar é coisa deveras engraçada. Sempre o achei, mesmo no tempo em que eu próprio fumava. Tive plena consciência de que a sociedade me obrigava a fumar e que era ridículo ao fazê-lo. Na verdade trazer um indivíduo consigo, homem ou mulher, no bolso das calças ou na malinha suspensa da mão, um pequeno embrulho onde se guardam uns rolinhos de papel com raspas de ervas a que deita fogo, sugando sofregamente os gases que resultam da combustão, expelindo-os depois pela boca ou pelo nariz, é ridículo. Eu condeno o tabaco não por fazer mal mas por ser ridículo. Eu fumei, como vos disse, porque a sociedade me obrigou a fumar. Em rapazinho, no jardim da Calçada do Monte, número setenta, ensaiei as primeiras fumaças escondido no caramanchão para que não me vissem. Embrulhava num papel qualquer umas folhas secas quaisquer, queimava-as e sugava o fumo. Era insuportável mas tinha que ser. Lá me fui habituando até fumar mesmo, engasgando-me e fazendo esgares, até conseguir ser igual aos outros. Assim fiz durante anos até tomar consciência do meu ridículo.
A mentalidade dos adultos não difere aliás muito da dos adolescentes. Os adultos, com a prosápia que a adultidade lhes permite, mascaram os sinais permanentes da sua adolescência com atitudes que desorientam os observadores menos cautelosos. Se apreciarmos o homem, ou a mulher, quando fuma, notaremos, nos modos como pega no cigarro, como o acende, como o coloca na boca, como expele o fumo, como faz cair a cinza, um certo ar de desafio, um certo ar de estar fazendo o que muito bem lhe apetece, executando um acto que o dignifica. Se o fumador for um homem de letras, um escritor, o expoente máximo da intelectualidade portuguesa, é notória a expressão voluntariosa e sublime quando fuma. Eu tenho uma colecção excelente de fotografias de intelectuais que tenho recortado das folhas da imprensa, jornais e revistas, em que todos estão a fumar, ou com o cigarro ao canto da boca fazendo um esgar, ou com dois dedos espetados e o cigarro instalado entre eles, ou meditando com a mão na testa e o cigarro pendendo dos lábios. Se além de intelectuais são mulheres, muitas vezes usam boquilha e ostentam-na de mão levantada e queixo erguido, num desafio.
Não ficaria mal dizer que fumar é um sacerdócio utilizando uma expressão que há tempos me caiu debaixo dos olhos. Não era produto da prosápia de um intelectual mas de um adolescente, aluno do meu Liceu de Pedro Nunes.
Rómulo de Carvalho, Memórias 

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