Penso na minha longa vida
e pergunto-me para que é que ela serviu. Compreendo que no contexto
cultural em que nos movimentamos, eu tenha sido útil, e isso me
torne merecedor de aplausos. Recebo-os mas não me alegram. O
convívio com os seres humanos causou-me a maior das desilusões. Se,
depois da morte, alguém me recebesse como se regressasse de uma
viagem, e me perguntasse "então, que tal? que tal essa
viagem?", enrugaria a testa e aspiraria o ar como quem se
prepara para soltar um suspiro. Que me desculpem os que me estimaram,
mas não valeu a pena. A consciência de que somos joguetes das
forças da Natureza que nos manobram puxando os seus cordelinhos,
deixando-nos apenas a reduzida margem de manobra própria , que
resultou daquela amálgama de pais, de avós, de bisavós, de
trisavós, tudo por aí fora, com gorilas e orangotangos à mistura,
mais a cultura que a sociedade nos impõe, toda essa desoladora
consciência me conduziu ao trato afável com todos. Nunca me zanguei
com ninguém, nunca cortei relações com ninguém, nunca pensei mal
de ninguém. É isto que eu sou porque é só isto que posso ser,
como todos os outros só podem ser o que são. Não critico os
defeitos de ninguém como não louvo as virtudes de ninguém.
Transplantados para outra cultura, as virtudes poderiam ser defeitos
e os defeitos ser virtudes. Isto não quer dizer que as virtudes não
devam ser premiadas com os nossos sorrisos, a nossa amizade e o nosso
amor, e que os defeitos não devam ser castigados. A ética social
assim o obriga porque vivemos em sociedade e temos que organizá-la
segundo certos cânones que nos defendam dos chamados maus e nos
aproximem dos chamados bons, tudo isto independentemente das
responsabilidades pessoais de cada um. Ninguém tem culpa do número
de cromossomas que possui nem da estrutura dos seus genes mas as
consequências que daí advêm podem obrigar o indivíduo a estender
os braços para lhe porem algemas nos pulsos ou a esticar o pescoço
para ajudar o Presidente da República a pendurar nele a honrosa
condecoração. E assim vamos andando, envaidecendo-nos ou mordendo
os lábios, inchando o peito ou pondo as mãos na cabeça.
Rómulo de Carvalho, Memórias
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