sábado, 3 de novembro de 2012

Mais um Novembro, mais um dia 24, mais um aniversário. Desta vez não só a rádio como a televisão se referiram a isso. Vejam lá! Deu-lhes para ali. Pois faço anos, sim. Mais um do que o ano passado. Já somam oitenta e seis! Perguntareis como me sinto e eu respondo-vos que me sinto bem. Continuo a caminhar verticalmente, a desembaraçar-me dos meus deveres e a ocupar o tempo naquilo que me agrada. Entretanto vou tirando vantagens da provecta idade. Quando recebo os habituais convites para ir aqui ou acolá ou solicitações para fazer isto ou aquilo, é a idade que me desculpa. A não ser que o assunto me interesse. O que é conveniente é que não me vejam porque então não acreditam na idade que tenho. Na verdade pareço ter aí uns dez anos menos mas convém-me ter oitenta e seis.
Penso na minha longa vida e pergunto-me para que é que ela serviu. Compreendo que no contexto cultural em que nos movimentamos, eu tenha sido útil, e isso me torne merecedor de aplausos. Recebo-os mas não me alegram. O convívio com os seres humanos causou-me a maior das desilusões. Se, depois da morte, alguém me recebesse como se regressasse de uma viagem, e me perguntasse "então, que tal? que tal essa viagem?", enrugaria a testa e aspiraria o ar como quem se prepara para soltar um suspiro. Que me desculpem os que me estimaram, mas não valeu a pena. A consciência de que somos joguetes das forças da Natureza que nos manobram puxando os seus cordelinhos, deixando-nos apenas a reduzida margem de manobra própria , que resultou daquela amálgama de pais, de avós, de bisavós, de trisavós, tudo por aí fora, com gorilas e orangotangos à mistura, mais a cultura que a sociedade nos impõe, toda essa desoladora consciência me conduziu ao trato afável com todos. Nunca me zanguei com ninguém, nunca cortei relações com ninguém, nunca pensei mal de ninguém. É isto que eu sou porque é só isto que posso ser, como todos os outros só podem ser o que são. Não critico os defeitos de ninguém como não louvo as virtudes de ninguém. Transplantados para outra cultura, as virtudes poderiam ser defeitos e os defeitos ser virtudes. Isto não quer dizer que as virtudes não devam ser premiadas com os nossos sorrisos, a nossa amizade e o nosso amor, e que os defeitos não devam ser castigados. A ética social assim o obriga porque vivemos em sociedade e temos que organizá-la segundo certos cânones que nos defendam dos chamados maus e nos aproximem dos chamados bons, tudo isto independentemente das responsabilidades pessoais de cada um. Ninguém tem culpa do número de cromossomas que possui nem da estrutura dos seus genes mas as consequências que daí advêm podem obrigar o indivíduo a estender os braços para lhe porem algemas nos pulsos ou a esticar o pescoço para ajudar o Presidente da República a pendurar nele a honrosa condecoração. E assim vamos andando, envaidecendo-nos ou mordendo os lábios, inchando o peito ou pondo as mãos na cabeça.
Rómulo de Carvalho, Memórias 

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