Bloom regressou a Lisboa
por uma porta negra.
Um amigo avisou-o de
imediato:
a polícia procura-te por
dois assassinatos
- um aqui e outro em Paris,
e a tua mãe morreu há
meses. Não deixou cartas, nem herança.
Bloom está assim só -
como partiu -
e é perseguido,
esconde-se, foge.
Mas um homem resiste, faz
parte
dos seus deveres de
animal. Mesmo entediado
há instintos que não
abandonam o organismo.
As ruas terminam em
solicitações aos vivos:
um senhor, por exemplo,
agarra com as duas mãos no chapéu
porque o vento tornou-se
indiscreto ao fim da tarde.
Príncipe Real, Bairro
Alto, Alvalade, Areeiro,
Martim Moniz, Anjos, o
Terreiro do Paço,
Lisboa recebe Bloom sem
comoção. As cidades
perderam a capacidade para
admirar as grandes viagens.
Bloom olha de longe para a
casa onde foi feliz; e nada sente.
Procurou o Espírito na
viagem à Índia,
encontrou a matéria que
já conhecia.
Nada agora o faz hesitar;
animais bem-comportados
e agarrados por coleiras a
árvores ladram
quando ele passa.
Os sapatos avançam, fuma
um cigarro,
entra num café e pede um
copo de vinho.
No estabelecimento, uma
velha orquestra mecânica -
arrumada em menos de um
metro cúbico - toca uma
canção que Bloom
costumava ouvir quando era jovem
e Mary o amava.
Quer chorar, mas no corpo
não encontra o itinerário certo.
Olha em redor: ninguém o
conhece.
Olha para o espelho: quem
é este?
Bloom ouviu histórias,
leu sete mil livros,
estudou; conheceu homens
e mulheres, viu e tocou em
mais de dois mil
objectos diferentes; e
agora, quando anda,
não pensa em nada.
Voltou a Lisboa. E o fim
do dia
tem uma bengala e uma
velha que
parecem conhecê-lo: Boa
tarde, dizem. Mas Bloom tem medo,
pressa e o estômago
quente; o azul do céu é limpo
por uma cor preta que
começa.
O tecto do país tem
hábitos: anoitece.
Bloom sorri e o barulho
dos seus sapatos no passeio
lembra-lhe a existência
do corpo:
«tomai conselho só de
experimentados»
ouvira um dia dizer. E eis
que aqui vai
um homem que amou, sofreu
e matou: quem o quer
ouvir? Ninguém. E a noite
intensa prossegue.
Passos nas costas de
Bloom. Ele assusta-se,
vira-se: um velho correcto
e pobre, Boa
noite, diz-lhe, Boa noite,
responde. A simpatia
geral dos desconhecidos,
finalmente.
Gostava de oferecer-lhe
esta mala
- diz, de súbito, Bloom
ao velho simpático que treme de frio. -
Tem uma edição rara de
um livro indiano
chamado «Mahabarata»;
vale dinheiro, e muito.
O velho aceitou a mala,
sim, e Bloom despede-se.
Ninguém hesita quando
está frio e é de noite.
Pela primeira vez não tem
nada nas mãos. A viagem
à Índia acabou numa rua
de Lisboa
nas mãos de um velho que
talvez não saiba ler
e que talvez até goste de
fazer desenhos
por cima de palavras
grandiosas. A cidade
tem a sinalização
adequada para que quem regressa a casa
não se perca no caminho.
Mas o frio aumenta
e Bloom não sabe para
onde ir.
A ingenuidade é
irrecuperável.
Bloom está em cima de uma
ponte alta
e a noite esconde
os sapatos pretos. Nenhuma
excitação
no homem que regressou ao
ponto de partida.
Há várias maneiras de um
corpo se matar,
e cair do alto sobre a
água é uma delas.
Uma mulher, entretanto,
aproxima-se.
Bloom vira a cabeça; é
uma mulher bonita, que sorri.
Não quer conversar?,
pergunta ela. Bloom encolhe os
ombros.
Ninguém em redor,
silêncio completo, a água
lá em baixo, por vezes um
carro.
Põe a mão no bolso: o
velho rádio do pai nem
com a viagem voltou a
funcionar.
Ele aproxima-se da mulher
e o mundo prossegue,
mas nada que aconteça
poderá impedir o definitivo tédio de
Bloom, o nosso herói.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia
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