segunda-feira, 3 de dezembro de 2012


Bloom regressou a Lisboa 
por uma porta negra.
Um amigo avisou-o de imediato:
a polícia procura-te por dois assassinatos 
- um aqui e outro em Paris,
e a tua mãe morreu há meses. Não deixou cartas, nem herança.
Bloom está assim só - como partiu -
e é perseguido, esconde-se, foge.

Mas um homem resiste, faz parte
dos seus deveres de animal. Mesmo entediado
há instintos que não abandonam o organismo.
As ruas terminam em solicitações aos vivos:
um senhor, por exemplo, agarra com as duas mãos no chapéu
porque o vento tornou-se indiscreto ao fim da tarde.
Príncipe Real, Bairro Alto, Alvalade, Areeiro,
Martim Moniz, Anjos, o Terreiro do Paço,
Lisboa recebe Bloom sem comoção. As cidades
perderam a capacidade para admirar as grandes viagens.
Bloom olha de longe para a casa onde foi feliz; e nada sente.

Procurou o Espírito na viagem à Índia,
encontrou a matéria que já conhecia.
Nada agora o faz hesitar; animais bem-comportados
e agarrados por coleiras a árvores ladram
quando ele passa.
Os sapatos avançam, fuma um cigarro,
entra num café e pede um copo de vinho.

No estabelecimento, uma velha orquestra mecânica -
arrumada em menos de um metro cúbico - toca uma
canção que Bloom costumava ouvir quando era jovem
e Mary o amava.
Quer chorar, mas no corpo não encontra o itinerário certo.
Olha em redor: ninguém o conhece.
Olha para o espelho: quem é este?

Bloom ouviu histórias,
leu sete mil livros, estudou; conheceu homens
e mulheres, viu e tocou em mais de dois mil
objectos diferentes; e agora, quando anda,
não pensa em nada.
Voltou a Lisboa. E o fim do dia
tem uma bengala e uma velha que
parecem conhecê-lo: Boa tarde, dizem. Mas Bloom tem medo,
pressa e o estômago quente; o azul do céu é limpo
por uma cor preta que começa.
O tecto do país tem hábitos: anoitece.

Bloom sorri e o barulho dos seus sapatos no passeio
lembra-lhe a existência do corpo:
«tomai conselho só de experimentados»
ouvira um dia dizer. E eis que aqui vai
um homem que amou, sofreu e matou: quem o quer
ouvir? Ninguém. E a noite intensa prossegue.

Passos nas costas de Bloom. Ele assusta-se,
vira-se: um velho correcto e pobre, Boa
noite, diz-lhe, Boa noite, responde. A simpatia
geral dos desconhecidos, finalmente.
Gostava de oferecer-lhe esta mala
- diz, de súbito, Bloom ao velho simpático que treme de frio. -
Tem uma edição rara de um livro indiano
chamado «Mahabarata»; vale dinheiro, e muito.

O velho aceitou a mala, sim, e Bloom despede-se.
Ninguém hesita quando está frio e é de noite.
Pela primeira vez não tem nada nas mãos. A viagem
à Índia acabou numa rua de Lisboa
nas mãos de um velho que talvez não saiba ler
e que talvez até goste de fazer desenhos
por cima de palavras grandiosas. A cidade
tem a sinalização adequada para que quem regressa a casa
não se perca no caminho. Mas o frio aumenta
e Bloom não sabe para onde ir.

A ingenuidade é irrecuperável.
Bloom está em cima de uma ponte alta
e a noite esconde
os sapatos pretos. Nenhuma excitação
no homem que regressou ao ponto de partida.
Há várias maneiras de um corpo se matar,
e cair do alto sobre a água é uma delas.
Uma mulher, entretanto, aproxima-se.
Bloom vira a cabeça; é uma mulher bonita, que sorri.

Não quer conversar?, pergunta ela. Bloom encolhe os
ombros.
Ninguém em redor, silêncio completo, a água
lá em baixo, por vezes um carro.
Põe a mão no bolso: o velho rádio do pai nem
com a viagem voltou a funcionar.
Ele aproxima-se da mulher e o mundo prossegue,
mas nada que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de
Bloom, o nosso herói.
Gonçalo M. Tavares, Uma viagem à Índia

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