segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Não apenas no Inverno: o mundo é frio.
É frio em todas as estações
do ano em que existam homens.
A humanidade não é uma progressiva aproximação aos deuses, não te iludas.
Os mísseis e o seu modo de controlo eficaz
à distância - eis a boa referência.
A humanidade é pois uma coisa que se aperfeiçoou
em actos à distância, daqui para ali,
e dali para mais longe.

Em actos de proximidade, pelo contrário,
o progresso tem sido praticamente nulo.
Um homem toca uma mulher com a mesma inabilidade
dos seus antepassados
de há dez séculos.
A vida avança e é monstruosa.
Bloom, ou qualquer outro homem,
tem um décimo do instinto da alegria
de um gato bem alimentado.

A vida é um objecto rudimentar, tosco,
disforme, que nunca os homens
entenderam como agarrar.
Ainda nem sequer perceberam qual o lado de cima
desse estranho objecto.
Ainda mal pousaste as mãos sobre a vida
e já a vida pousou fortemente as mãos sobre ti.

Os cães, os gatos, as galinhas imbecis, em círculos
inúteis, sincronizadas com a marcha dos soldados em dias festivos.
As várias partes do corpo que parecem não se justificar
no organismo,
a garganta de um mudo, a caneta na mão de um analfabeto
que não aprendeu sequer a desenhar.
O mundo é disforme e mesquinho.
É Bloom quem o diz. Ou então Jean M.

De qualquer maneira, o narrador também fala.
(Como saber quem diz o quê? E que importa?)
As pessoas acautelam-se até nos exageros.
Há uma exacta precaução
nas relações entre um cidadão e outro.
A cidade instalou um valor médio entre dois seres vivos,
e os gráficos são excelentes,
mas a vida não.
(Bloom quer apontar para a vida, mas como tem frio
não tira as mãos dos bolsos.)

As folhas caem das árvores altas
mais lentamente que um avião,
de bem mais alto, num desastre.
As telhas impedem a chuva e
impedem que o olhar dentro de casa,
no centro da casa, consiga ir dos pés com sapatos
até aos astros fortes.
Há uma incompatibilidade enorme
entre o conforto (doméstico) e a astronomia
- e esta é a ciência mais antiga do homem.

As formigas, por exemplo, são insignificantes para qualquer
alteração do território.
O microscópio não trouxe sabedoria sobre o minúsculo,
confunde-se o minúsculo com uma coisa que, aumentada,
tem as dimensões normais;
e prossegue-se.
A vida tem para o homem um metro e oitenta de média,
e esta é a sua filosofia
mais profunda.

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia

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