É frio em todas as
estações
do ano em que existam
homens.
A humanidade não é uma
progressiva aproximação aos deuses, não te iludas.
Os mísseis e o seu modo
de controlo eficaz
à distância - eis a boa
referência.
A humanidade é pois uma
coisa que se aperfeiçoou
em actos à distância,
daqui para ali,
e dali para mais longe.
Em actos de proximidade,
pelo contrário,
o progresso tem sido
praticamente nulo.
Um homem toca uma mulher
com a mesma inabilidade
dos seus antepassados
de há dez séculos.
A vida avança e é
monstruosa.
Bloom, ou qualquer outro
homem,
tem um décimo do instinto
da alegria
de um gato bem alimentado.
A vida é um objecto
rudimentar, tosco,
disforme, que nunca os
homens
entenderam como agarrar.
Ainda nem sequer
perceberam qual o lado de cima
desse estranho objecto.
Ainda mal pousaste as mãos
sobre a vida
e já a vida pousou
fortemente as mãos sobre ti.
Os cães, os gatos, as
galinhas imbecis, em círculos
inúteis, sincronizadas
com a marcha dos soldados em dias festivos.
As várias partes do corpo
que parecem não se justificar
no organismo,
a garganta de um mudo, a
caneta na mão de um analfabeto
que não aprendeu sequer a
desenhar.
O mundo é disforme e
mesquinho.
É Bloom quem o diz. Ou
então Jean M.
De qualquer maneira, o
narrador também fala.
(Como saber quem diz o
quê? E que importa?)
As pessoas acautelam-se
até nos exageros.
Há uma exacta precaução
nas relações entre um
cidadão e outro.
A cidade instalou um valor
médio entre dois seres vivos,
e os gráficos são
excelentes,
mas a vida não.
(Bloom quer apontar para a
vida, mas como tem frio
não tira as mãos dos
bolsos.)
As folhas caem das árvores
altas
mais lentamente que um
avião,
de bem mais alto, num
desastre.
As telhas impedem a chuva
e
impedem que o olhar dentro
de casa,
no centro da casa, consiga
ir dos pés com sapatos
até aos astros fortes.
Há uma incompatibilidade
enorme
entre o conforto
(doméstico) e a astronomia
- e esta é a ciência
mais antiga do homem.
As formigas, por exemplo,
são insignificantes para qualquer
alteração do território.
O microscópio não trouxe
sabedoria sobre o minúsculo,
confunde-se o minúsculo
com uma coisa que, aumentada,
tem as dimensões normais;
e prossegue-se.
A vida tem para o homem um
metro e oitenta de média,
e esta é a sua filosofia
mais profunda.
Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à
Índia
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