«Nos últimos tempos
passámos por uma estranha experiência, Agathe e eu, quando saíamos
para ir à cidade! Com um tempo tão bom, o mundo apresenta-se alegre
e harmónico, de tal modo que não vemos como ele é sempre
diferente, de acordo com os elementos que configuram o seu tempo e a
sua substância. Toda a gente pára e anda com a maior das
naturalidades. E no entanto, a partir do momento em que não
participamos incondicionalmente dele, paira sobre esse estado de
presente aparentemente irrefutável qualquer coisa que remete
estranhamente para o vazio, qualquer coisa como uma declaração de
amor falhada ou um desnudamento semelhante.
«Andamos a passear pelas
ruas cor de violeta da cidade, que ardem como fogo lá no alto,
abrindo-se à luz. Ou passamos desse azul palpável para uma praça
totalmente inundada de sol: então, as casas erguem-se, recolhidas e
como que encostadas à parede, mas também fortemente marcadas, como
se alguém as tivesse riscado a buril num fundo de claridade colorida
com linhas finas que tornam tudo extremamente nítido. E num momento
como esse não sabemos se toda essa beleza cheia de si mesma nos
causa uma funda emoção, ou nos deixa indiferentes. As duas coisas
acontecem. A beleza anda no fio da navalha, entre o prazer e a
tristeza.
«Mas não terá a
experiência da beleza precisamente esse efeito, o de iluminar a
tristeza da vida comum e escurecer os seus prazeres? Parece que a
beleza pertence a um mundo em cujas profundezas não existe nem
tristeza nem alegria. Talvez até nem a própria beleza exista nesse
mundo, mas antes uma espécie de serena gravidade quase
indescritível, e o seu nome nasce apenas da refracção de um brilho
anónimo na atmosfera comum. É esse mundo que Agathe e eu
procuramos, sem ainda nos decidirmos; movemo-nos ao longo das suas
fronteiras e desfrutamos dessa profunda irradiação com cautela, nos
lugares onde ela ainda se mistura com a luz forte do dia-a-dia, mal
se distinguindo dela!»
Robert Musil, O Homem sem
Qualidades
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