sábado, 29 de dezembro de 2012


«Nos últimos tempos passámos por uma estranha experiência, Agathe e eu, quando saíamos para ir à cidade! Com um tempo tão bom, o mundo apresenta-se alegre e harmónico, de tal modo que não vemos como ele é sempre diferente, de acordo com os elementos que configuram o seu tempo e a sua substância. Toda a gente pára e anda com a maior das naturalidades. E no entanto, a partir do momento em que não participamos incondicionalmente dele, paira sobre esse estado de presente aparentemente irrefutável qualquer coisa que remete estranhamente para o vazio, qualquer coisa como uma declaração de amor falhada ou um desnudamento semelhante.
«Andamos a passear pelas ruas cor de violeta da cidade, que ardem como fogo lá no alto, abrindo-se à luz. Ou passamos desse azul palpável para uma praça totalmente inundada de sol: então, as casas erguem-se, recolhidas e como que encostadas à parede, mas também fortemente marcadas, como se alguém as tivesse riscado a buril num fundo de claridade colorida com linhas finas que tornam tudo extremamente nítido. E num momento como esse não sabemos se toda essa beleza cheia de si mesma nos causa uma funda emoção, ou nos deixa indiferentes. As duas coisas acontecem. A beleza anda no fio da navalha, entre o prazer e a tristeza.
«Mas não terá a experiência da beleza precisamente esse efeito, o de iluminar a tristeza da vida comum e escurecer os seus prazeres? Parece que a beleza pertence a um mundo em cujas profundezas não existe nem tristeza nem alegria. Talvez até nem a própria beleza exista nesse mundo, mas antes uma espécie de serena gravidade quase indescritível, e o seu nome nasce apenas da refracção de um brilho anónimo na atmosfera comum. É esse mundo que Agathe e eu procuramos, sem ainda nos decidirmos; movemo-nos ao longo das suas fronteiras e desfrutamos dessa profunda irradiação com cautela, nos lugares onde ela ainda se mistura com a luz forte do dia-a-dia, mal se distinguindo dela!»
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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