quarta-feira, 12 de dezembro de 2012


O Verão tinha regressado, e os dois passavam muito tempo ao ar livre. No jardim desabrochavam flores e arbustos, e quando Ulrich se punha a olhar para uma flor em botão - coisa que não era propriamente um velho hábito deste homem até aí impaciente -, a contemplação parecia não ter fim, nem, para dizer a verdade, princípio. Se por acaso sabia o nome da flor, estava salvo do grande mar da infinitude. Nesse caso, as estrelinhas douradas num caule despido chamavam-se «forsítias suspensas», e aquelas folhas e umbelas precoces eram «lilases». Se não conhecia o nome, chamava o jardineiro, o velho homem pronunciava um nome desconhecido e tudo ficava novamente em ordem: a antiquíssima superstição de que a posse da palavra certa nos protege do caos incontrolável das coisas exercia o seu poder tranquilizante, como milhares de anos atrás. Mas tudo podia ser diferente, e acontecer que Ulrich se visse sozinho e sem ajudas diante de um desses raminhos ou florzinhas, nem sequer Agathe para partilhar as suas incertezas: nessas alturas parecia-lhe totalmente impossível compreender o verde-claro de uma folha a despontar, e a misteriosa plenitude da forma nítida do pequeno cálice de um botão de flor transformava-se no círculo ininterrupto de infinitas variações. Para além disso, um homem como ele, se não se quisesse enganar (o que, por consideração para com Agathe, não podia acontecer), não podia acreditar num encontro ingénuo com a natureza, com os seus sussurros e olhos em alvo, a sua devoção e a sua música muda. Tudo isso era privilégio de uma certa singeleza que imagina que mal encosta a cabeça à erva já Deus lhe está a fazer cócegas no pescoço, apesar de nos dias de semana não ter nada contra o facto de a natureza ser negociada na Bolsa. Ulrich detestava este misticismo barato, sempre acessível e sempre pronto ao louvor, de uma leviandade sem limites na sua eterna devoção, e preferiu entregar-se à impotência de designar por palavras uma cor de uma nitidez palpável ou de descrever uma daquelas formas que falam por si, sem conceito, mas de forma tão penetrante. De facto, a palavra falha nesses momentos, e o fruto permanece no ramo, embora já o julguemos na boca: é este, certamente, o primeiro mistério do misticismo do dia claro.
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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