Parecia-lhe que o
fundamento da vida humana era um enorme medo de qualquer coisa, de
algo de indeterminado. Estava deitado na areia branca, entre o azul
do ar e da água, na língua de areia da ilha, entre as profundezas
frias do mar e do céu. Como se estivesse deitado na neve. Se tivesse
de ser arrastado por uma tempestade, era assim que seria. Clarisse
saltava atrás das dunas com cardos, como uma criança. Ele não
receava nada. Via a vida de cima para baixo. Aquela ilha elevara-se
nos ares com ele. Compreendeu a sua história passada. Centenas de
ordens humanas vieram e foram, dos deuses até aos alfinetes das
jóias, e da psicologia ao gramofone, cada uma delas uma unidade
obscura, cada uma a crença obscura de ser a última, ascendente, e
cada uma, afundando-se ao cabo de alguns séculos ou milénios, feita
de entulho e estaleiro: o que é isto senão uma escalada a partir do
nada, de cada vez numa direcção diferente? Uma daquelas dunas que o
vento forma, durante algum tempo é o seu próprio peso, até que o
mesmo vento volta a desfazê-la? O que é todo o nosso fazer senão a
angústia nervosa de sermos nada? A começar pelos divertimentos, que
o não são, porque não passam de barulho, de um grasnar excitado
para matar o tempo, porque uma obscura certeza nos avisa de que é
ele que acabará por nos matar; até às invenções que se superam
umas às outras, às montanhas absurdas de dinheiro que matam o
espírito, quer sejamos esmagados quer suportados por elas, até às
modas inquietas e impacientes do espírito, aos vestidos que mudam
constantemente, às mortes, aos crimes, às guerras em que se
descarrega uma profunda desconfiança em relação ao que existe e
foi criado. O que é tudo isso senão a inquietação de um homem que
escava numa cova até aos joelhos sem nunca dela conseguir sair, de
um ser que nunca escapará completamente ao nada, que desespera e se
dá múltiplas formas, mas num qualquer ponto secreto, que nem ele
conhece, é matéria transitória e nada?
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
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