segunda-feira, 14 de janeiro de 2013


- Se eu de facto pensei isso - respondeu -, agora prefiro formular as ideias de forma menos exigente. Pode parecer menos elegante, mas hoje chamaria às duas tonalidades do sentimento, e às duas possibilidades de viver sob o signo da paixão, simplesmente a apetitiva e, por contraste, a não-apetitiva. Em cada sentimento existe uma fome que se comporta como um animal selvagem; e existe uma não-fome, qualquer coisa que, livre da gula e da saciedade, amadurece de forma suave como um cacho de uvas ao sol do Outono. Só Deus sabe porquê, mas o facto é que me interessa muito chegar a entender-me contigo quanto a isto ...
- Temos então uma natureza «vegetal» e outra «animal» em cada alma? - perguntou Agathe, com um leve toque de gozo e troça.
- Quase diria que é assim - respondeu Ulrich. - Talvez o lado animal e o vegetal, entendidos como oposição fundamental dos apetites, constituam um achado para qualquer filósofo! Estou certo de que um dia aprofundarei o tema; mas por agora arrisco apenas ir tão longe como já fui. No fundo, o que disse significa apenas que é possível distinguir dois lados de um sentimento. Aquele a que chamo apetitivo impele à acção, ao movimento, ao gozo, e leva o sentimento a transformar-se em obra, ou também em ideia ou convicção - tudo formas de aliviar a tensão, mas também de alargar e reforçar o âmbito de acção. Ao mesmo tempo que isso acontece, o sentimento desgasta-se, esgota-se no êxito alcançado e chega ao fim; ou então encerra-se nele e "transforma a sua força viva em força armazenada que mais tarde eventualmente lhe pode voltar a dar aquela. Por isso, a actividade robusta do sentimento mundano e a sua caducidade, sobre a qual suspiraste tão agradavelmente, não se separam uma da outra. E não esqueçamos - digo-o sem preconceitos - que é a essa parte apetitiva do sentimento, à nossa natureza animal, como preferiste chamar-lhe, que o mundo deve todas as obras e toda a beleza, mas também toda a sua agitação e a desconfiança que dele temos e, em última análise, a persistência contínua e o absurdo do vazio que caracteriza o seu curso!
- Como eu te dou razão! - concordou Agathe. - Meu Deus, todo este trabalho do sentimento, a sua riqueza mundana, todo esse frenesi da vontade, da alegria, do fazer, da infidelidade por nada, a não ser porque ele nos impele a isso; e nisso entra tudo o que vivemos e esquecemos, pensamos e queremos desesperadamente, para voltar a esquecê-lo de novo. É tão belo como uma árvore cheia de maçãs de todas as cores, mas também amorfo e monótono como tudo o que ano após ano, e seguindo o mesmo curso, se vai arredondando e por fim cai!
- E o que é que tens contra isso? É assim tão mau? - Agora era Ulrich que fazia perguntas. Sentindo-se ultrapassado por tão viva concordância, negava-lhe a sua com um sorriso.
Mas a irmã não se fez esperar com a sua resposta decidida e bem disposta:
- Tenho menos contra isso do que se poderia esperar de ti depois das tuas últimas palavras! - respondeu ao desafio amável dele. - As minhas maçãs são inofensivas, comparadas com as tuas feras que passam da gula à saciedade e vice-versa! E não exiges tu com crueldade que se faça de tudo e todos, nem que seja de um suspiro mais fundo, um acontecimento significativo? Está-me a parecer que tu próprio queres ser uma fera do intelecto!
- É verdade, talvez eu tenha essa fraqueza de admirar no espírito dos seres humanos as virtudes de uma arma! Mas tu, minha querida e não menos admirada irmã - replicou Ulrich -, acabaste de rejeitar a ideia de que a vida só se justifica quando se fazem coisas significativas! E também a de que é nosso dever - continuou - formar sempre uma ideia e um princípio. Os teus gostos mais profundos são alegremente indiferentes a esta ideia: a sela do poder num cavalo de batalha nunca foi o teu forte! 
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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