- Se eu de facto pensei
isso - respondeu -, agora prefiro formular as ideias de forma menos
exigente. Pode parecer menos elegante, mas hoje chamaria às duas
tonalidades do sentimento, e às duas possibilidades de viver sob o
signo da paixão, simplesmente a apetitiva e, por contraste, a
não-apetitiva. Em cada sentimento existe uma fome que se comporta
como um animal selvagem; e existe uma não-fome, qualquer coisa que,
livre da gula e da saciedade, amadurece de forma suave como um cacho
de uvas ao sol do Outono. Só Deus sabe porquê, mas o facto é que
me interessa muito chegar a entender-me contigo quanto a isto ...
- Temos então uma
natureza «vegetal» e outra «animal» em cada alma? - perguntou
Agathe, com um leve toque de gozo e troça.
- Quase diria que é assim
- respondeu Ulrich. - Talvez o lado animal e o vegetal, entendidos
como oposição fundamental dos apetites, constituam um achado para
qualquer filósofo! Estou certo de que um dia aprofundarei o tema;
mas por agora arrisco apenas ir tão longe como já fui. No fundo, o
que disse significa apenas que é possível distinguir dois lados de
um sentimento. Aquele a que chamo apetitivo impele à acção, ao
movimento, ao gozo, e leva o sentimento a transformar-se em obra, ou
também em ideia ou convicção - tudo formas de aliviar a tensão,
mas também de alargar e reforçar o âmbito de acção. Ao mesmo
tempo que isso acontece, o sentimento desgasta-se, esgota-se no êxito
alcançado e chega ao fim; ou então encerra-se nele e "transforma
a sua força viva em força armazenada que mais tarde eventualmente
lhe pode voltar a dar aquela. Por isso, a actividade robusta do
sentimento mundano e a sua caducidade, sobre a qual suspiraste tão
agradavelmente, não se separam uma da outra. E não esqueçamos -
digo-o sem preconceitos - que é a essa parte apetitiva do
sentimento, à nossa natureza animal, como preferiste chamar-lhe, que
o mundo deve todas as obras e toda a beleza, mas também toda a sua
agitação e a desconfiança que dele temos e, em última análise, a
persistência contínua e o absurdo do vazio que caracteriza o seu
curso!
- Como eu te dou razão! -
concordou Agathe. - Meu Deus, todo este trabalho do sentimento, a sua
riqueza mundana, todo esse frenesi da vontade, da alegria, do fazer,
da infidelidade por nada, a não ser porque ele nos impele a isso; e
nisso entra tudo o que vivemos e esquecemos, pensamos e queremos
desesperadamente, para voltar a esquecê-lo de novo. É tão belo
como uma árvore cheia de maçãs de todas as cores, mas também
amorfo e monótono como tudo o que ano após ano, e seguindo o mesmo
curso, se vai arredondando e por fim cai!
- E o que é que tens
contra isso? É assim tão mau? - Agora era Ulrich que fazia
perguntas. Sentindo-se ultrapassado por tão viva concordância,
negava-lhe a sua com um sorriso.
Mas a irmã não se fez
esperar com a sua resposta decidida e bem disposta:
- Tenho menos contra isso
do que se poderia esperar de ti depois das tuas últimas palavras! -
respondeu ao desafio amável dele. - As minhas maçãs são
inofensivas, comparadas com as tuas feras que passam da gula à
saciedade e vice-versa! E não exiges tu com crueldade que se faça
de tudo e todos, nem que seja de um suspiro mais fundo, um
acontecimento significativo? Está-me a parecer que tu próprio
queres ser uma fera do intelecto!
- É verdade, talvez eu
tenha essa fraqueza de admirar no espírito dos seres humanos as
virtudes de uma arma! Mas tu, minha querida e não menos admirada
irmã - replicou Ulrich -, acabaste de rejeitar a ideia de que a vida
só se justifica quando se fazem coisas significativas! E também a
de que é nosso dever - continuou - formar sempre uma ideia e um
princípio. Os teus gostos mais profundos são alegremente
indiferentes a esta ideia: a sela do poder num cavalo de batalha
nunca foi o teu forte!
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
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