Uma corrente silenciosa de
pó de neve pairava no ar que a luz do sol enchia, vindo de um grupo
de árvores que perdera a flor, e o sopro que a movia era tão leve
que nem uma folha bulia. Não projectava sombra sobre o verde da
relva, mas esta parecia escurecer a partir de dentro, como um olho.
As árvores e os arbustos cheios de folhagem tenra e abundante que se
alinhavam ao lado ou ao fundo davam a impressão de ser espectadores
absortos que, surpreendidos e enfeitiçados nas suas vestes garridas,
participavam deste cortejo fúnebre e desta celebração da natureza.
Nesta imagem fundiam-se Primavera e Outono, linguagem e silêncio da
natureza, vida e morte; e os olhos que o contemplavam diziam agora
aos lábios para se calarem. Os corações pareciam ter parado,
arrancados do peito para se juntarem ao cortejo silencioso que
atravessava o ar. «E o coração foi-me arrancado do peito», disse
um místico. Agathe abriu-se cautelosamente ao entusiasmo que já uma
vez, neste mesmo jardim, quase a levara a pensar que ia chegar o
Reino do Milénio, cuja imagem associava à de uma sociedade
extática. Mas não esqueceu o que desde então aprendera: Neste
reino temos de nos manter silenciosos, disse de si para si. Não
podemos dar lugar a nenhuma espécie de desejo, nem sequer ao de
fazer perguntas. Temos de nos libertar totalmente do entendimento
racional com que de resto tratamos das nossas coisas. Temos de
retirar ao Eu todas as ferramentas interiores. Parecia-lhe que dentro
dela muros e pilares se desviavam para deixar entrar o mundo nos seus
olhos, como fazem as lágrimas! Mas de repente deu por que estava
apenas superficialmente dentro desse estado, e que os seus
pensamentos há muito que tinham saído dele.
Robert Musil, O Homem sem
Qualidades
Sem comentários:
Enviar um comentário