domingo, 6 de janeiro de 2013


Uma corrente silenciosa de pó de neve pairava no ar que a luz do sol enchia, vindo de um grupo de árvores que perdera a flor, e o sopro que a movia era tão leve que nem uma folha bulia. Não projectava sombra sobre o verde da relva, mas esta parecia escurecer a partir de dentro, como um olho. As árvores e os arbustos cheios de folhagem tenra e abundante que se alinhavam ao lado ou ao fundo davam a impressão de ser espectadores absortos que, surpreendidos e enfeitiçados nas suas vestes garridas, participavam deste cortejo fúnebre e desta celebração da natureza. Nesta imagem fundiam-se Primavera e Outono, linguagem e silêncio da natureza, vida e morte; e os olhos que o contemplavam diziam agora aos lábios para se calarem. Os corações pareciam ter parado, arrancados do peito para se juntarem ao cortejo silencioso que atravessava o ar. «E o coração foi-me arrancado do peito», disse um místico. Agathe abriu-se cautelosamente ao entusiasmo que já uma vez, neste mesmo jardim, quase a levara a pensar que ia chegar o Reino do Milénio, cuja imagem associava à de uma sociedade extática. Mas não esqueceu o que desde então aprendera: Neste reino temos de nos manter silenciosos, disse de si para si. Não podemos dar lugar a nenhuma espécie de desejo, nem sequer ao de fazer perguntas. Temos de nos libertar totalmente do entendimento racional com que de resto tratamos das nossas coisas. Temos de retirar ao Eu todas as ferramentas interiores. Parecia-lhe que dentro dela muros e pilares se desviavam para deixar entrar o mundo nos seus olhos, como fazem as lágrimas! Mas de repente deu por que estava apenas superficialmente dentro desse estado, e que os seus pensamentos há muito que tinham saído dele.
 Robert Musil, O Homem sem Qualidades
 

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