Maravilhoso pensamento:
uma vida sem angústia! Superar a angústia era a bem-aventurança,
era a redenção. Como ele sofrera de medo toda a vida e agora,
quando a morte já o estrangulava, não sabia o que isso era, nem
angústias, nem pavor, só sorriso, só redenção, só concordância.
Reconheceu, de repente, o que era angústia e como só poderia ser
superada por quem a tivesse conhecido. Tinha-se medo de milhares de
coisas, de dores, de juízes, do próprio coração, tinha-se medo de
adormecer, medo de acordar, medo da solidão, da loucura, da morte -
especialmente dela, da morte. Mas tudo eram máscaras e disfarces. Na
realidade, só uma coisa havia de que se tinha medo: do deixar-se
cair, do passo incerto, do pequenino passo para além de todas as
garantias. Quem uma vez, uma única vez se entregasse, quem uma vez
tivesse confiança e se abandonasse ao Destino, esse ficaria liberto.
Não obedeceria mais a leis do mundo, cairia no espaço universal e
mover-se-ia no curso das constelações. Assim
era. E era tão simples que qualquer criança podia compreender.
Klein não pensou isto
como quem raciocina; viveu, sentiu, apalpou, cheirou, provou tudo
isto. Provou, cheirou, viu e compreendeu o que era a vida. Viu a
criação do mundo, viu o fim do mundo, ambos como duas hostes
permanentes em marcha uma contra a outra, mas sempre a caminho, sem
repouso. O mundo nascia e morria continuamente. Cada vida era um
sopro exalado por Deus. Cada morte um sopro da respiração divina.
Quem aprendesse a não resistir, a deixar-se cair, morria facilmente
e facilmente nascia. Quem resistisse, sofria angústia, a morte
ser-lhe-ia difícil e nascia contra vontade.
Na escuridão cinzenta da
chuva, sobre o lago nocturno, viu, ao submergir-se, reflectido e
representado o jogo do mundo: sóis e estrelas rolavam subindo e
rolavam descendo, coros de homens e animais, espíritos e anjos
defrontavam-se, cantavam, calavam, gritavam; multidões lutavam umas
contra as outras, cada ser desconhecendo-se a si próprio e
odiando-se e perseguindo-se a si em cada um dos outros. A ânsia de
todos era a morte, o repouso, o alvo de todos era Deus, o regresso a
Deus, a permanência em Deus! Esse alvo era criador de angústia,
porque era erro. Não havia permanência em Deus! Não havia repouso!
Havia só o eterno fluxo e refluxo, criação e dissolução,
nascimento e morte, partida e regresso, sem pausa, sem fim. E por
isso havia só uma arte, só uma doutrina, só um mistério:
deixar-se cair, não resistir à vontade de Deus, não se agarrar a
nada, nem ao Bem nem ao Mal. Era a redenção, só então se estaria
liberto do sofrimento e da angústia.
A sua vida desenrolava-se
como uma região de florestas, vales e aldeias contemplada do cimo de
uma alta montanha. Tudo tinha sido bom, simples e bom, e tudo se
tornara, pela sua angústia e pela sua resistência, em torrente e
confusão, em medonho remoinho e convulsão de miséria e desgraça.
Não havia mulher sem a qual se não pudesse viver, e também não
havia nenhuma com quem se não pudesse viver. Não havia coisa
alguma, no mundo, que não fosse tão bela, tão desejável, tão
capaz de dar felicidade como o seu contrário. Era bem-aventurado
viver, era bem-aventurado morrer, desde que se estivesse só no
universo. Repouso vindo do exterior não havia. Nem repouso no
cemitério, nem repouso em Deus, nem sortilégio algum jamais
interrompia a eterna cadeia do nascimento, a infinita sucessão do
respirar de Deus. Mas havia repouso no próprio íntimo. Chamava-se:
deixa-te cair! Não te defendas! Morre com gosto! Vive com gosto!
Hermann Hesse, Ele e o Outro
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