(...)
É, talvez, por ter
compreendido isso que decidi passar os próximos anos neste lugar
deserto - neste promontório queimado pelo sol. Rodeado de história
por todos os lados, só esta ilha se conserva livre de qualquer
referência. Jamais foi mencionada nos anais da raça que a possui. O
seu passado histórico foi refundido, não no tempo, mas no espaço -
não existem nem templos, nem túmulos, nem anfiteatros para
corromper as ideias com as suas falsas comparações. Um renque de
embarcações pintadas, um porto abrigado atrás das colinas, e uma
pequena cidade abandonada pela negligência dos homens. É tudo. Uma
vez por mês, um vapor que faz a carreira de Esmirna escala o porto.
Nestas tardes de inverno,
as vagas desencadeadas escalam a falésia e invadem os bosques de
plátanos gigantes e selvagens onde costumo passear, uivando um calão
brutal e inesperado, inundando e abalando os troncos.
Caminho na companhia de um
passado que ninguém pode partilhar comigo e que o próprio tempo não
me pode roubar. De cabelos, colados à testa, protejo com uma das
mãos o fornilho rubro do meu cachimbo contra a violência do vento.
Lá em cima, no céu, correm estrelas à desfilada. Antares, perdida
naquela poeirada de nuvens ... Abandonados os livros dóceis, os
amigos complacentes, as salas iluminadas, as chaminés propícias às
longas discussões, todo o universo civilizado ... Não lamento ter
deixado isso tudo, embora, às vezes, pense nesse mundo em que vivi.
Vejo na minha escolha,
também, algo de fortuito, nascido de impulsos que sou obrigado a
reconhecer não se coadunarem com a minha natureza. E, contudo, por
estranho que seja, é somente aqui que eu sou, por fim, capaz de
reentrar e novamente habitar a cidade exumada juntamente com os meus
amigos; é aqui que consigo moldá-los na pesada teia de aranha das
metáforas que nem durarão metade do tempo que ainda resta à
própria cidade - ainda assim penso, pelo menos. Aqui, sou capaz de
ver a nossa história e a história da cidade como um único
fenómeno.
Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Justine
Sem comentários:
Enviar um comentário