quinta-feira, 2 de maio de 2013

Como poeta da consciência histórica, creio ser obrigado a considerar a paisagem como um campo submetido ao desejo humano, torturado em aldeias e lugarejos, rasgado em cidades. Uma paisagem coberta de sinais, assinada pelos homens e pelo tempo. Agora começo, contudo, a crer que o desejo é herdado da paisagem; que o homem depende, no que respeita a este acessório que é a vontade, da sua situação num lugar; que não passa de um locatário de terras férteis ou de florestas malsãs. O que vejo não é (como outrora pensava) o impacte da sua vontade sobre a natureza, mas a irresistível pressão que acaba por impregná-lo das doutrinas não especificadas e cegas da natureza, dos seus humores e dos seus tormentos. Ela escolheu esta pobre coisa bifurcada para seu modelo.
(...)
É, talvez, por ter compreendido isso que decidi passar os próximos anos neste lugar deserto - neste promontório queimado pelo sol. Rodeado de história por todos os lados, só esta ilha se conserva livre de qualquer referência. Jamais foi mencionada nos anais da raça que a possui. O seu passado histórico foi refundido, não no tempo, mas no espaço - não existem nem templos, nem túmulos, nem anfiteatros para corromper as ideias com as suas falsas comparações. Um renque de embarcações pintadas, um porto abrigado atrás das colinas, e uma pequena cidade abandonada pela negligência dos homens. É tudo. Uma vez por mês, um vapor que faz a carreira de Esmirna escala o porto.
Nestas tardes de inverno, as vagas desencadeadas escalam a falésia e invadem os bosques de plátanos gigantes e selvagens onde costumo passear, uivando um calão brutal e inesperado, inundando e abalando os troncos.
Caminho na companhia de um passado que ninguém pode partilhar comigo e que o próprio tempo não me pode roubar. De cabelos, colados à testa, protejo com uma das mãos o fornilho rubro do meu cachimbo contra a violência do vento. Lá em cima, no céu, correm estrelas à desfilada. Antares, perdida naquela poeirada de nuvens ... Abandonados os livros dóceis, os amigos complacentes, as salas iluminadas, as chaminés propícias às longas discussões, todo o universo civilizado ... Não lamento ter deixado isso tudo, embora, às vezes, pense nesse mundo em que vivi.
Vejo na minha escolha, também, algo de fortuito, nascido de impulsos que sou obrigado a reconhecer não se coadunarem com a minha natureza. E, contudo, por estranho que seja, é somente aqui que eu sou, por fim, capaz de reentrar e novamente habitar a cidade exumada juntamente com os meus amigos; é aqui que consigo moldá-los na pesada teia de aranha das metáforas que nem durarão metade do tempo que ainda resta à própria cidade - ainda assim penso, pelo menos. Aqui, sou capaz de ver a nossa história e a história da cidade como um único fenómeno.

Lawrence Durrell, O Quarteto de Alexandria, Justine

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