segunda-feira, 6 de maio de 2013

No decurso dessa segunda primavera o Khamsin foi o pior de que guardo memória. Antes do Poente, o céu do deserto tomava-se castanho, depois ia escurecendo lentamente, entumecia-se como uma face esbofeteada e fazia explodir as franjas das nuvens, gigantescas oitavas de almagre que se acumulavam sobre o delta como cortinas de cinzas debaixo de um vulcão. A cidade contrai-se como preparando-se para enfrentar uma tempestade. Algumas rajadas de vento trazendo esparsas gotas de chuva são as guardas-avançadas da obscuridade que apaga o céu. E, impalpável, invisível, na obscuridade das alcovas com as persianas fechadas, a areia invade tudo, aparece, como por magia, nas roupas há muito fechadas nos armários, insinua-se entre as páginas dos livros, deposita-se sobre os quadros e sobre as colheres. Nas fechaduras e debaixo das unhas. O ar soluça, vibra, seca as mucosas e injeta os olhos de sangue. Nuvens de sangue seco percorrem as ruas como profecias; a areia cai sobre o mar como a poeira sobre os caracóis de uma velha cabeleira suja. As canetas de tinta permanente entopem, os lábios estalam e as lâminas das persianas cobrem-se de uma fina película branca como se fosse neve fresca. Os faluchos fantasmagóricos que deslizam no canal são tripulados por lobisomens com a cabeça envolvida em trapos. De vez em quando, uma rabanada de vento estala como uma chicotada, de cima para baixo, faz turbilhonar toda a cidade, e tem-se a impressão de que as árvores, os minaretes, os monumentos e as pessoas são arrastados no derradeiro turbilhão de um tomado gigantesco, levados pelas areias do deserto de onde provieram, regressando ao imenso nada esculpido das planícies infinitas das dunas ...

Lawrence Durrel, O Quarteto de Alexandria, Justine 

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