sexta-feira, 17 de maio de 2013


Os desprezos soberanos de Pursewarden tornavam-no uma personagem quase temível. «Reconheço», prosseguia Mountolive, «que me sentia incapaz de classificá-lo dentro dos quadros habituais. Mas o que ele exprimia eram antes opiniões que atitudes, e devo dizer que pronunciou certo número de fórmulas impressionantes que fixei para ti, tais como: ''A obra do artista é a única relação satisfatória que ele pode estabelecer com os seus semelhantes, porque os seus verdadeiros amigos deve procurá-los entre os mortos ou entre os que ainda não nasceram. Por isso não deve ocupar-se de política; é domínio que não lhe compete. Deve preocupar-se mais com os valores do que com a política. Hoje tudo isso me faz pensar num espetáculo ridículo de sombras chinesas, porque governar é uma arte, não uma ciência, da mesma forma que uma sociedade é um organismo e não um sistema. A sua unidade menor é a família e a monarquia é a estrutura que realmente lhe convém, porque uma família real é verdadeiramente o reflexo do que nela existe de humano, uma legítima idolatria. Falo por nós, os britânicos, com o nosso quixotismo essencial e a nossa preguiça mental. Nada sei dos outros. Quanto aos erros do capitalismo, são todos remediáveis mediante uma justa tributação. Não se deve procurar uma igualdade imaginária entre os homens mas uma equidade decente. Os reis fabricariam então uma vaga filosofia, como faziam na China; uma monarquia absoluta é impossível nos nossos dias porque a filosofia da realeza está muito por baixo. O mesmo se diga das ditaduras.
«"Quanto ao comunismo, também não me parece capaz de resolver o problema; a análise do homem em termos de comportamento económico cerceia a alegria de viver e é uma loucura querer despojá-lo do elemento pessoal." E assim por diante. Visitou a Rússia durante um mês com uma embaixada cultural e não compreendeu nada. Claro, defendeu-se com boutades deste género: "Judeus tristonhos em cujos rostos se adivinhava toda a melancolia de uma aritmética secreta; em Kiev, perguntei a um homem já de idade avançada se a Rússia era um lugar agradável. Ele inspirou fundo e, depois de ter olhado em redor de modo furtivo, disse: 'Costumamos dizer que outrora Lúcifer teve boas intenções, uma mudança de atitude. Decidiu praticar uma boa ação, para variar - apenas uma. Então, o inferno nasceu na Terra, e chamaram-lhe União Soviética:"
«Durante todo esse tempo a irmã guardou um eloquente silêncio, acariciando a beira da mesa com os seus dedos longos e macios, curvos como gavinhas, sorrindo dos seus aforismos como de uma fraqueza secreta. Em certo momento, quando ele se ausentou por alguns segundos, ela voltou-se para mim e disse:
«- Na verdade, ele não dá grande importância a esses assuntos. A sua única preocupação é aprender a submeter-se ao desespero.
«Essa sentença obscura, que caiu daqueles lábios com tanta naturalidade, impressionou-me profundamente e não soube o que responder. Quando Pursewarden voltou, retomou a conversa como se tivesse recapitulado intimamente todo o debate. Disse:
«- Não, os reis são uma necessidade biológica. Talvez reflitam a própria constituição da psique? Acomodámo-nos tão admiravelmente à questão da sua divindade que eu não teria o menor prazer em vê-los substituídos por qualquer ditador trabalhista com prisões e pelotões de execução. - Protestei diante daquele ponto de vista absurdo mas ele falava com toda a seriedade. - Asseguro-lhe que é isso o que as esquerdas pretendem; a guerra civil é o seu objetivo, embora não se dê bem por isso, graças à forma hábil pela qual os puritanos ressequidos como Shaw e companhia apresentam a causa. O marxismo é uma vingança de judeus e irlandeses! - Tive de rir ouvindo aquilo e, justiça lhe seja feita, Pursewarden riu-se também. - Mas ao menos isto explica por que motivo sou mal vu - disse - e por que motivo me sinto sempre feliz em sair da Inglaterra para outros países onde não sinto qualquer responsabilidade moral nem o menor desejo de me ocupar de fórmulas tão deprimentes. Afinal de contas, com todos os diabos, eu sou um escritor! 
Lawrence Durrel, O Quarteto de Alexandria. Mountolive

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