Ainda fazia escuro quando
parámos ao largo do porto invisível, onde se adivinha a linha de
fortificações e as redes contra os submarinos. Tentei penetrar na
obscuridade, surpreender-lhe os contornos. A barragem só se abria de
madrugada e por agora a cidade continuava fechada, opaca. Algures
diante de nós estendia-se a costa invisível de África, com o seu
«beijo de espinhos», como dizem os árabes. Era quase intolerável
encontrar-me tão perto das torres e dos minaretes da cidade e não
conseguir vê-los. Mas nem sequer avistava os meus próprios dedos se
afastava a mão à distância de um braço. O mar tomara-se uma
imensa ante câmara vazia, num balão oco de trevas.
Depois o mar estremeceu
subitamente, como uma rajada de ar passando sobre um leito de brasas,
e as mais próximas distâncias rosaram-se como uma concha marinha,
tomando um colorido que se foi aprofundando gradualmente até à rica
tonalidade rosa de uma flor. Um gemido desmaiado e terrível avançou
para nós por sobre as águas pulsando como o palpitar das asas de
alguma temível ave pré-histórica - sereias que uivavam como os
danados devem uivar nos limbos. Os nossos nervos foram sacudidos como
os ramos de uma árvore. E como respondendo a este som começaram a
brotar luzes por toda a parte, esporadicamente a princípio, depois
em cordões, em fitas, em quadrados de cristal. O porto destacou-se
subitamente iluminado em cheio contra o fundo negro do céu, enquanto
os longos dedos dos projetores começavam a percorrer o firmamento na
sua maneira trôpega, como se fossem os tentáculos de algum inseto
disforme perseguindo uma presa nas paredes deslizantes da
obscuridade. Uma densa torrente de foguetes multicolores começou a
subir no meio da neblina que envolvia os navios de guerra, vazando no
céu os seus ramos opulentos de estrelas, de diamantes e de pérolas
que se dispersavam com uma prodigalidade maravilhosa. Todo o ar
estremecia. Nuvens de pólvora rosa e amarela subiam com os foguetes
para iluminar os cascos brilhantes dos balões de barragem
disseminados por toda a parte. O próprio mar parecia tremer. Não
fazia ideia de que nos encontrássemos tão perto ou que a cidade
pudesse ser tão bela numa saturnal guerreira. Tinha começado a
dilatar-se, a expandir-se como uma rosa mítica das trevas e o
bombardeamento acompanhava-a inundando o espírito. Tínhamos agora
de gritar para nos ouvirmos uns aos outros. Contemplávamos as cinzas
ardentes de Cartago. Pensei que estávamos a assistir à queda do
homem da cidade.
Era belo e traumatizante.
À esquerda alta da cena os projetores tinham principiado a
reunir-se, estremecendo e deslizando no seu trôpego movimento como
homens com andas. Cruzavam-se e colidiam febrilmente, e era evidente
que lhes tinham assinalado a existência de algum inseto que se
debatia na teia de aranha das trevas exteriores. Acavalavam-se,
fundiam-se, procuravam-se, separavam-se incansavelmente. E finalmente
avistámos aquilo que perseguiam: seis pequenas borboletas de prata
que avançavam com insuportável lentidão. O céu incendiou-se em
tomo delas, mas elas não abandonaram o seu fatal langor; e
languidamente também se enrolavam os colares de diamantes
incandescentes que os navios cuspiam ou as densas baforadas dos tiros
de obus que marcavam a progressão do projétil.
A despeito do rugido que
nos ensurdecia, era possível isolar vários sons distintos que
orquestravam o bombardeamento: o crepitar dos estilhaços caindo como
granizo sobre os telhados de zinco ondulado dos armazéns
ribeirinhos; as vozes mecânicas e hesitantes dos sinaleiros dos
navios repetindo, numa voz de ventríloquo, frases semi-inteligíveis
no género: «Três graus à direita, três graus à direita.»
Distinguia-se até no cerne desta barafunda uma música em quartos de
tom, como uma punhalada; depois vinha também o estrondo dos prédios
desabando. As manchas de luz desapareciam, ficando em seu lugar um
poço de trevas, onde uma chamazinha de um amarelo sujo vinha beber
como um animal sedento. Mais próximo (a superfície da água
devolvia o eco) ouvia-se a rica colheita dos invólucros das granadas
caindo sobre as plataformas; uma cascata de metal amarelo jorrando
dos canhões apontados para o céu.
E assim continuou, numa
festa visual que, contudo, fazia estremecer as vértebras diante do
furacão de insensato poder que revelava. Jamais até então eu tinha
compreendido a impersonalidade da guerra. Não havia lugar para os
seres humanos ou para pensar neles debaixo dessa imensa umbela de
morte colorida. Cada pausa no respirar era apenas um refúgio
temporário.
Depois, tal como tinha
principiado, o espetáculo acabou. O porto desapareceu como um
cenário, a fonte de pedras preciosas esgotou-se, o céu esvaziou-se,
o silêncio envolveu-nos para ser dilacerado novamente pelo uivo
faminto das sereias. Depois, mais nada - uma ausência total pesando
toneladas de obscuridade, de onde brotavam os pequenos ruídos
familiares da água lambendo os costados. Uma aragem de terra
lançou-nos às narinas o perfume aluvial do estuário invisível.
Seria apenas em imaginação que ouvi, ao longe, os sons das aves
selvagens do lago?
Lawrence Durrel, O Quarteto de Alexandria. Clea
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