sábado, 6 de julho de 2013

Ainda fazia escuro quando parámos ao largo do porto invisível, onde se adivinha a linha de fortificações e as redes contra os submarinos. Tentei penetrar na obscuridade, surpreender-lhe os contornos. A barragem só se abria de madrugada e por agora a cidade continuava fechada, opaca. Algures diante de nós estendia-se a costa invisível de África, com o seu «beijo de espinhos», como dizem os árabes. Era quase intolerável encontrar-me tão perto das torres e dos minaretes da cidade e não conseguir vê-los. Mas nem sequer avistava os meus próprios dedos se afastava a mão à distância de um braço. O mar tomara-se uma imensa ante câmara vazia, num balão oco de trevas.
Depois o mar estremeceu subitamente, como uma rajada de ar passando sobre um leito de brasas, e as mais próximas distâncias rosaram-se como uma concha marinha, tomando um colorido que se foi aprofundando gradualmente até à rica tonalidade rosa de uma flor. Um gemido desmaiado e terrível avançou para nós por sobre as águas pulsando como o palpitar das asas de alguma temível ave pré-histórica - sereias que uivavam como os danados devem uivar nos limbos. Os nossos nervos foram sacudidos como os ramos de uma árvore. E como respondendo a este som começaram a brotar luzes por toda a parte, esporadicamente a princípio, depois em cordões, em fitas, em quadrados de cristal. O porto destacou-se subitamente iluminado em cheio contra o fundo negro do céu, enquanto os longos dedos dos projetores começavam a percorrer o firmamento na sua maneira trôpega, como se fossem os tentáculos de algum inseto disforme perseguindo uma presa nas paredes deslizantes da obscuridade. Uma densa torrente de foguetes multicolores começou a subir no meio da neblina que envolvia os navios de guerra, vazando no céu os seus ramos opulentos de estrelas, de diamantes e de pérolas que se dispersavam com uma prodigalidade maravilhosa. Todo o ar estremecia. Nuvens de pólvora rosa e amarela subiam com os foguetes para iluminar os cascos brilhantes dos balões de barragem disseminados por toda a parte. O próprio mar parecia tremer. Não fazia ideia de que nos encontrássemos tão perto ou que a cidade pudesse ser tão bela numa saturnal guerreira. Tinha começado a dilatar-se, a expandir-se como uma rosa mítica das trevas e o bombardeamento acompanhava-a inundando o espírito. Tínhamos agora de gritar para nos ouvirmos uns aos outros. Contemplávamos as cinzas ardentes de Cartago. Pensei que estávamos a assistir à queda do homem da cidade.
Era belo e traumatizante. À esquerda alta da cena os projetores tinham principiado a reunir-se, estremecendo e deslizando no seu trôpego movimento como homens com andas. Cruzavam-se e colidiam febrilmente, e era evidente que lhes tinham assinalado a existência de algum inseto que se debatia na teia de aranha das trevas exteriores. Acavalavam-se, fundiam-se, procuravam-se, separavam-se incansavelmente. E finalmente avistámos aquilo que perseguiam: seis pequenas borboletas de prata que avançavam com insuportável lentidão. O céu incendiou-se em tomo delas, mas elas não abandonaram o seu fatal langor; e languidamente também se enrolavam os colares de diamantes incandescentes que os navios cuspiam ou as densas baforadas dos tiros de obus que marcavam a progressão do projétil.
A despeito do rugido que nos ensurdecia, era possível isolar vários sons distintos que orquestravam o bombardeamento: o crepitar dos estilhaços caindo como granizo sobre os telhados de zinco ondulado dos armazéns ribeirinhos; as vozes mecânicas e hesitantes dos sinaleiros dos navios repetindo, numa voz de ventríloquo, frases semi-inteligíveis no género: «Três graus à direita, três graus à direita.» Distinguia-se até no cerne desta barafunda uma música em quartos de tom, como uma punhalada; depois vinha também o estrondo dos prédios desabando. As manchas de luz desapareciam, ficando em seu lugar um poço de trevas, onde uma chamazinha de um amarelo sujo vinha beber como um animal sedento. Mais próximo (a superfície da água devolvia o eco) ouvia-se a rica colheita dos invólucros das granadas caindo sobre as plataformas; uma cascata de metal amarelo jorrando dos canhões apontados para o céu.
E assim continuou, numa festa visual que, contudo, fazia estremecer as vértebras diante do furacão de insensato poder que revelava. Jamais até então eu tinha compreendido a impersonalidade da guerra. Não havia lugar para os seres humanos ou para pensar neles debaixo dessa imensa umbela de morte colorida. Cada pausa no respirar era apenas um refúgio temporário.

Depois, tal como tinha principiado, o espetáculo acabou. O porto desapareceu como um cenário, a fonte de pedras preciosas esgotou-se, o céu esvaziou-se, o silêncio envolveu-nos para ser dilacerado novamente pelo uivo faminto das sereias. Depois, mais nada - uma ausência total pesando toneladas de obscuridade, de onde brotavam os pequenos ruídos familiares da água lambendo os costados. Uma aragem de terra lançou-nos às narinas o perfume aluvial do estuário invisível. Seria apenas em imaginação que ouvi, ao longe, os sons das aves selvagens do lago?
Lawrence Durrel, O Quarteto de Alexandria. Clea

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