segunda-feira, 15 de julho de 2013

E, embora ocupado o meu espírito por estas recordações, ia vendo com outra parte da minha consciência aquela Alexandria que se desbobinava uma vez mais diante de mim, com os seus cativantes pormenores, o seu insolente colorido, a sua nobreza e a sua beleza esmagadora. As lojecas, protegidas do sol por fragmentos de sacaria, armazenavam na penumbra as mais diversas mercadorias, desde codornizes vivas até bolos de mel e espelhos mágicos ... As frutarias, cujo sortido brilhante mais brilhante se tomava ainda em exposição sobre papéis coloridos; o ouro quente das laranjas deitadas sobre leitos de púrpura e magenta. O clarão fumarento das cavernas dos caldeireiros. Selas de camelo lindamente ornamentadas. Olaria e pérolas de jade azul contra o mau-olhado. Toda esta beleza prismática era vivificada pela multidão que se entrecruzava, pelos uivos dos rádios nos cafés, os gritos lentos e soluçados dos ambulantes, as pragas das ruas, e pelas ululações dementadas das carpideiras que nas cercanias choravam diante do corpo de algum notável xeque. E eis que, atravessando o proscénio com a insolência perfeita de quem não deve, avançam os etíopes cor de abrunho sob os turbantes alvacentos, os sudaneses de bronze com os lábios vermelho-brasa, os libaneses e os beduínos com pele de estanho e perfil de francelho formando como bordados brilhantes sobre a monotonia soturna das mulheres veladas, o sombrio sonho muçulmano de um paraíso escondido, apenas percetível pelo buraco da fechadura do olho humano. E, percorrendo essas ruelas estreitas, com as suas enormes cargas a roçar as paredes de lama, cambaleavam os camelos, colocando as enormes patas com infinita delicadeza. Aquilo recordou-me uma preleção de Scobie sobre a prioridade das saudações: «É necessário compreender que se trata de uma questão de formas. Em matéria de delicadeza dão lições aos ingleses. É inconveniente atirar com os seus salaam aleikum ao primeiro que se encontra. É o homem montado num camelo que deve cumprimentar primeiro o que vem a cavalo, o que monta um cavalo o que vem sobre um burro, o que monta um burro o que vem a pé, o que está de pé o homem sentado, o grupo maior o grupo menor, o jovem o mais velho ... No nosso país este ensino só se dá nas grandes escolas. Mas aqui, o mais insignificante garoto conhece o código de cor. E agora repita comigo, para fixar ... » Era mais fácil repetir a frase do que recordar a ordem da precedência no momento preciso. Sorrindo, tentei restabelecer essas prioridades esquecidas enquanto continuava a olhar em redor. O teatro de fantoches da vida egípcia lá estava com todas as personagens colocadas em ordem - o aguadeiro, o escriba, a carpideira, a prostituta, o amanuense e o padre -, aparentemente inalterados pelo tempo ou pela guerra. 
Lawrence Durrel, O Quarteto de Alexandria. Clea

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