sábado, 17 de agosto de 2013

A alma não tem o seu lugar no pensamento metafísico. É a própria realidade e só as figuras típicas que encarnam a atitude dum povo podem exprimir o que é a alma.
É muito diferente conhecer um país como itinerário, com a consulta académica dos seus livros, e conhecê-lo de maneira quotidiana, natural e familiar. Eu conheci o Brasil assim, antes de cruzar as suas portas com o passaporte na mão. Meu pai, que foi homem rico e proprietário de boa parte da Rua do Ouvidor, no Rio, sentava-se à mesa tarde, como fazem os boémios, trazendo com eles um sorriso enigmático. Era feito de lembranças de tertúlias e de pactos. Era um homem afável e perigoso. Sempre exerceu em mim uma fascinação reservada. Eu invejava-lhe a vida passada, invejava-lhe o Brasil que ele tinha nas veias como se fosse parente de sangue. Às vezes falava do Brasil urbano onde ele viveu vinte e cinco anos. E eu ouvia, com essa incredulidade dos que adivinham a experiência que nos foge pelos abismos do tempo. Era um cavalheiro com as mulheres, o que os europeus não são e creio que não foram nunca porque julgam as mulheres, e julgar é uma forma de desamor, de perfídia, se quiserem. A consciência moderna é sobretudo crítica, o que quer dizer que aborrece a fé. Está voltada para poderes supostamente mais elevados, como a ciência. Mas o Brasil, que não teve Freud como tutela, escapa às contradições da agitação terrena e deixa que o divino coexista e trabalhe com os homens. A incapacidade de Freud para compreender a linguagem religiosa fez da cultura europeia um lugar árido, ainda que cultivado, como certos jardins franceses em que prevalece a geometria e onde não crescem flores.
O Brasil ensina-nos essa via suburbana que é a alma. É feita de coisas completamente reais, que nos acontecem todos os dias e que existem dentro e fora do código penal; dentro e fora do catecismo e da regra política. Sem o conhecimento dessa experiência livre e complexa dos nossos encontros com os outros, vizinhos e estranhos.
O mundo precisa de sábios e de criadores. Mas precisa igualmente de pessoas naturais, conversáveis, sem a mística da avaliação que é comum nos negócios, em que se cruzam interesses e sentimentos. Os sentimentos, que tão bem têm servido os poetas, perturbam muitas vezes a arte de se ser só. Esforçamo-nos por nos aparentarmos com alguém e acabamos por verificar que ninguém quer um parentesco connosco. Todas as ideologias e toda a moral religiosa ou cívica assentam na afinidade com os outros. Mas tal afinidade não existe. Tudo começou porque se imaginou sermos feitos à imagem e semelhança de Deus, o que é duma soberba pouco menos que ridícula. Deus é um condutor de energias e não um parente lá de casa. Sendo assim, temos que ver os outros, de toda a espécie, nação e cultura, como uma variedade de casos para resolver. Ninguém tem a chave para a felicidade, mas depende de nós sermos apropriados ao tempo em que vivemos. O que era bom ontem, pode ser hoje nefasto. Temos que inventar um modo transitório de ser infalível.
O amor entre os povos foi sempre acidentado e difícil. Quanto mais nos parecemos, mais resistimos a ser iguais. Criamos as nossas dificuldades de entendimento como quem cria pérolas em ostras, de maneira persistente e adequada. E, no entanto, a linguagem que usamos é imprópria dos nossos anseios. Falamos uns com os outros para ganhar tempo e não para encontrar soluções.
Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil 

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