A alma não tem o seu
lugar no pensamento metafísico. É a própria realidade e só as
figuras típicas que encarnam a atitude dum povo podem exprimir o que
é a alma.
É muito diferente
conhecer um país como itinerário, com a consulta académica dos
seus livros, e conhecê-lo de maneira quotidiana, natural e familiar.
Eu conheci o Brasil assim, antes de cruzar as suas portas com o
passaporte na mão. Meu pai, que foi homem rico e proprietário de
boa parte da Rua do Ouvidor, no Rio, sentava-se à mesa tarde, como
fazem os boémios, trazendo com eles um sorriso enigmático. Era
feito de lembranças de tertúlias e de pactos. Era um homem afável
e perigoso. Sempre exerceu em mim uma fascinação reservada. Eu
invejava-lhe a vida passada, invejava-lhe o Brasil que ele tinha nas
veias como se fosse parente de sangue. Às vezes falava do Brasil
urbano onde ele viveu vinte e cinco anos. E eu ouvia, com essa
incredulidade dos que adivinham a experiência que nos foge pelos
abismos do tempo. Era um cavalheiro com as mulheres, o que os
europeus não são e creio que não foram nunca porque julgam as
mulheres, e julgar é uma forma de desamor, de perfídia, se
quiserem. A consciência moderna é sobretudo crítica, o que quer
dizer que aborrece a fé. Está voltada para poderes supostamente
mais elevados, como a ciência. Mas o Brasil, que não teve Freud
como tutela, escapa às contradições da agitação terrena e deixa
que o divino coexista e trabalhe com os homens. A incapacidade de
Freud para compreender a linguagem religiosa fez da cultura europeia
um lugar árido, ainda que cultivado, como certos jardins franceses
em que prevalece a geometria e onde não crescem flores.
O Brasil ensina-nos essa
via suburbana que é a alma. É feita de coisas completamente reais,
que nos acontecem todos os dias e que existem dentro e fora do código
penal; dentro e fora do catecismo e da regra política. Sem o
conhecimento dessa experiência livre e complexa dos nossos encontros
com os outros, vizinhos e estranhos.
O mundo precisa de sábios
e de criadores. Mas precisa igualmente de pessoas naturais,
conversáveis, sem a mística da avaliação que é comum nos
negócios, em que se cruzam interesses e sentimentos. Os sentimentos,
que tão bem têm servido os poetas, perturbam muitas vezes a arte de
se ser só. Esforçamo-nos por nos aparentarmos com alguém e
acabamos por verificar que ninguém quer um parentesco connosco.
Todas as ideologias e toda a moral religiosa ou cívica assentam na
afinidade com os outros. Mas tal afinidade não existe. Tudo começou
porque se imaginou sermos feitos à imagem e semelhança de Deus, o
que é duma soberba pouco menos que ridícula. Deus é um condutor de
energias e não um parente lá de casa. Sendo assim, temos que ver os
outros, de toda a espécie, nação e cultura, como uma variedade de
casos para resolver. Ninguém tem a chave para a felicidade, mas
depende de nós sermos apropriados ao tempo em que vivemos. O que era
bom ontem, pode ser hoje nefasto. Temos que inventar um modo
transitório de ser infalível.
O amor entre os povos foi
sempre acidentado e difícil. Quanto mais nos parecemos, mais
resistimos a ser iguais. Criamos as nossas dificuldades de
entendimento como quem cria pérolas em ostras, de maneira
persistente e adequada. E, no entanto, a linguagem que usamos é
imprópria dos nossos anseios. Falamos uns com os outros para ganhar
tempo e não para encontrar soluções.
Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil
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