quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Depois de muito tempo voltam os lugares como ondas de morcegos que roçam os cabelos e chiam para se dar a conhecer. Assim volta o passeio no Amazonas até ao abraço do Rio Negro. Eu tinha aquela disposição colérica de quem ama e vê o objeto do seu amor frequentado por outros. Por mim, deitava à água todos os passageiros do barco do tipo Vaticano que vai rolando na planície espessa. O Mundo tornou-se promíscuo e cheio de gente que imita outra gente; a beleza dele está em perigo por ser demasiado carregado de atrativos. As cataratas do Niágara, para onde se desce protegido por chapéus de oleado amarelo, não passam de um pobre engenho de dispensar a água, como se alguém o inventasse e os turistas fossem vê-lo sem qualquer respeito e recolhimento.
No Rio Amazonas ainda se sente um pequeno bramido vindo das margens onde não está ninguém. Em pleno charco do rio, um rapazinho vende cocos, decepando-os com uma catana, com um gesto sacrificial. Tudo é tão imenso que a morte tem pouco significado. O sentido do crime é muito apagado na orla da floresta pura como uma deusa.
Pouco se sabe do Amazonas. Suportará a predação do homem e os seus contínuos procedimentos de renegado? Ou existem lá dentro civilizações resplandecentes, em que se imolam virgens em nome dos antigos exploradores vindos do céu, há muito desaparecidos? Lá, onde o Rio Negro abraça o Amazonas, há uma lista de água, como uma corda torcida que nunca deixa de se enrolar e desenrolar. Os barcos passam-lhe por cima e parece que saltam ao passar. «É o Rio Negro» - dizem-me. «Tem mais força do que a Anaconda.» E o rio deixa ouvir um rangido de embarcações afundadas, como se no fundo estivessem baús rebentados donde escaparam as riquezas inauditas.
O abraço do Rio Negro deixa-nos tristes para toda a vida.
Podemos regressar ao nosso posto e pôr coerência nas nossas lembranças. Mas o Rio Negro não se deixa cativar; não é paisagem, é um poder que se pode simbolizar por duas espadas eternamente em combate, ferindo e cortando a faixa da água que, ao mesmo tempo, junta e separa.
Lembro-me de como a chuva caía na coberta, onde não estava nenhum dos viajantes. É difícil perceber nada de mais amado do que essa candura do rio e da floresta. Por isso eu penso que os homens vão morrer todos antes que a Terra acabe. E voltarão a crescer as árvores do fundo das águas, num silêncio pungente e de onde partiram as emoções, tédio e pavor, desejo e esperança. Tudo o que é necessário aos homens desaparece. E não fica deles qualquer vestígio. Só o Rio Negro e o Amazonas escrevem a sua história, como uma espada que eternamente combate para um fim impossível de atingir. «Querer as mesmas coisas, repelir as mesmas coisas, é isto que constitui a sólida amizade.» O Rio Negro procede assim. Todos o podem ver, mas ninguém vive para o contar. E, se vive - que importa? 

Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil 

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