Depois de muito tempo
voltam os lugares como ondas de morcegos que roçam os cabelos e
chiam para se dar a conhecer. Assim volta o passeio no Amazonas até
ao abraço do Rio Negro. Eu tinha aquela disposição colérica de
quem ama e vê o objeto do seu amor frequentado por outros. Por mim,
deitava à água todos os passageiros do barco do tipo Vaticano que
vai rolando na planície espessa. O Mundo tornou-se promíscuo e
cheio de gente que imita outra gente; a beleza dele está em perigo
por ser demasiado carregado de atrativos. As cataratas do Niágara,
para onde se desce protegido por chapéus de oleado amarelo, não
passam de um pobre engenho de dispensar a água, como se alguém o
inventasse e os turistas fossem vê-lo sem qualquer respeito e
recolhimento.
No Rio Amazonas ainda se
sente um pequeno bramido vindo das margens onde não está ninguém.
Em pleno charco do rio, um rapazinho vende cocos, decepando-os com
uma catana, com um gesto sacrificial. Tudo é tão imenso que a morte
tem pouco significado. O sentido do crime é muito apagado na orla da
floresta pura como uma deusa.
Pouco se sabe do Amazonas.
Suportará a predação do homem e os seus contínuos procedimentos
de renegado? Ou existem lá dentro civilizações resplandecentes, em
que se imolam virgens em nome dos antigos exploradores vindos do céu,
há muito desaparecidos? Lá, onde o Rio Negro abraça o Amazonas, há
uma lista de água, como uma corda torcida que nunca deixa de se
enrolar e desenrolar. Os barcos passam-lhe por cima e parece que
saltam ao passar. «É o Rio Negro» - dizem-me. «Tem mais força do
que a Anaconda.» E o rio deixa ouvir um rangido de embarcações
afundadas, como se no fundo estivessem baús rebentados donde
escaparam as riquezas inauditas.
O abraço do Rio Negro
deixa-nos tristes para toda a vida.
Podemos regressar ao nosso
posto e pôr coerência nas nossas lembranças. Mas o Rio Negro não
se deixa cativar; não é paisagem, é um poder que se pode
simbolizar por duas espadas eternamente em combate, ferindo e
cortando a faixa da água que, ao mesmo tempo, junta e separa.
Lembro-me de como a chuva
caía na coberta, onde não estava nenhum dos viajantes. É difícil
perceber nada de mais amado do que essa candura do rio e da floresta.
Por isso eu penso que os homens vão morrer todos antes que a Terra
acabe. E voltarão a crescer as árvores do fundo das águas, num
silêncio pungente e de onde partiram as emoções, tédio e pavor,
desejo e esperança. Tudo o que é necessário aos homens desaparece.
E não fica deles qualquer vestígio. Só o Rio Negro e o Amazonas
escrevem a sua história, como uma espada que eternamente combate
para um fim impossível de atingir. «Querer as mesmas coisas,
repelir as mesmas coisas, é isto que constitui a sólida amizade.»
O Rio Negro procede assim. Todos o podem ver, mas ninguém vive para
o contar. E, se vive - que importa? Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil
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