Lembro Espinoza, que
definia a superstição como a quimera do espírito humano. E assim,
caminhando no abandono dos pensamentos, chego ao assunto deste breve
prelúdio à literatura brasileira. Para mim, os primeiros encontros
com as Letras brasileiras foram fatais, porque as conheci pelo lado
irreal e evocatório da narrativa doutro país de que nada se sabe. O
lado quimérico, digamos.
Havia em casa uma
«Biblioteca Internacional de Obras Célebres», compilada por gente
douta e aplicada nos seus conhecimentos. Eram vinte e quatro volumes,
com ilustrações relativas aos textos, obra de artistas famosos;
tinha também retratos dos autores, e foi lá que pela primeira vez
vi Pushkin, George Sand, Machado de Assis, e muitos outros. Aos dez
anos, tomar assim contacto com a literatura universal tem qualquer
coisa de magia. A ninfa das águas, de Hoffmann, passando na aba dos
exércitos de Napoleão, deixava-me uma impressão de curiosidade bem
perto do amor pela arte de contar. Certas histórias aterradoras de
Poe foi aí que as aprendi, assim como a sua poesia «O Corvo», ou
os líricos versos de «Annabel Lee». E tudo isso me deixava
alvoroçada, quase febril. Eu admirava o poder narrativo de tão
magníficos mestres que, para mim, eram magos, capazes de transformar
em encantamentos as desilusões deste mundo. Por isso eu me referi
aos pensamento de Espinoza sobre a superstição. Mas enquanto que a
superstição nunca encontra durável satisfação para as desgraças
humanas, e tem de ser constantemente mudada noutra superstição
diferente, a arte narrativa, ficção estável e como tal
reconhecida, não nos subjuga, só nos consola; não se torna um meio
de governar as massas, mas um refúgio para os seus desastres e
misérias, se eles são rotineiros e não desencadeados num ritmo
desesperado.
A quimera da literatura
começa por não ter cerimonial; não exige um respeito constante,
não tem uma importância dominante. Tão depressa nos faz companhia,
se a solicitamos, como a deixamos de lado; levando, no entanto, na
mente o seu doce pretexto para tomar o mundo como uma fábula com
consequências que a matéria suporta gloriosamente.
Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil
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