domingo, 29 de setembro de 2013

Não se pense, contudo, que o espírito dos cães é como uma nuvem bonançosa que levemente passa, uma alvorada primaveral de suave luz, um tanque de jardim com cisnes brancos vogando, se o fosse não teria o Achado começado, de repente, a ganir lastimeiro, E eu, e eu, dizia ele. Para responder a tal desgarramento de alma aflita, não tinha achado Cipriano Algor, apreensivo como ia pela responsabilidade da missão que o levava ao Centro, melhores palavras que Desta vez ficas em casa, o que valeu ao angustiado animal foi ter visto Marta dar dois passos atrás depois de ter entregado o sobrescrito ao pai, assim ficou o Achado ciente de que não o iriam deixar sem companhia, na verdade, mesmo constituindo cada parte, de per si, o todo a que pertence, como cremos que já deixámos demonstrado por a + b, duas partes, desde que estejam unidas, fazem muita diferença no total. Marta acenou ao pai um cansado gesto de adeus e voltou para casa. O cão não a seguiu logo, ficou à espera de que a furgoneta, depois de descer a ladeira para a estrada, desaparecesse por trás da primeira casa da povoação. Quando daí a pouco entrou na cozinha, viu que a dona estava sentada na mesma cadeira em que tinha trabalhado durante estes dias. Passava os dedos pelos olhos uma e outra vez como se precisasse de aliviá-los de uma sombra ou de uma dor. Decerto por estar no tenro verdor da mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito, pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais idoso, e por essa razão, supondo que a idade está obrigada a suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o cinismo que não pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas isso deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de que, em assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi melhor que o diminuído. Comovida, Marta passou-lhe devagar a mão pela cabeça, acariciando-o, e, como ele não se retirava e continuava a olhá-la fixamente, pegou num carvão e começou a riscar no papel os primeiros traços de um esboço. Ao princípio, as lágrimas impediam-na de ver bem, mas, pouco a pouco, ao mesmo tempo que a mão ganhava segurança, os olhos foram aclarando, e a cabeça do cão, como se emergisse do fundo de uma água turva, apareceu-lhe na sua inteira beleza e força, no seu mistério e na sua interrogação. A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano. 
José Saramago, A Caverna

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