Não se pense, contudo,
que o espírito dos cães é como uma nuvem bonançosa que levemente
passa, uma alvorada primaveral de suave luz, um tanque de jardim com
cisnes brancos vogando, se o fosse não teria o Achado começado, de
repente, a ganir lastimeiro, E eu, e eu, dizia ele. Para responder a
tal desgarramento de alma aflita, não tinha achado Cipriano Algor,
apreensivo como ia pela responsabilidade da missão que o levava ao
Centro, melhores palavras que Desta vez ficas em casa, o que valeu ao
angustiado animal foi ter visto Marta dar dois passos atrás depois
de ter entregado o sobrescrito ao pai, assim ficou o Achado ciente de
que não o iriam deixar sem companhia, na verdade, mesmo constituindo
cada parte, de per si, o todo a que pertence, como cremos que já
deixámos demonstrado por a + b, duas partes, desde que estejam
unidas, fazem muita diferença no total. Marta acenou ao pai um
cansado gesto de adeus e voltou para casa. O cão não a seguiu logo,
ficou à espera de que a furgoneta, depois de descer a ladeira para a
estrada, desaparecesse por trás da primeira casa da povoação.
Quando daí a pouco entrou na cozinha, viu que a dona estava sentada
na mesma cadeira em que tinha trabalhado durante estes dias. Passava
os dedos pelos olhos uma e outra vez como se precisasse de aliviá-los
de uma sombra ou de uma dor. Decerto por estar no tenro verdor da
mocidade, Achado não teve ainda tempo de adquirir opiniões
formadas, claras e definitivas sobre a necessidade e o significado
das lágrimas no ser humano, no entanto, considerando que esses
humores líquidos persistem em manifestar-se no estranho caldo de
sentimento, razão e crueldade de que o dito ser humano é feito,
pensou que talvez não fosse desacerto grave chegar-se à chorosa
dona e pousar-lhe docemente a cabeça nos joelhos. Um cão mais
idoso, e por essa razão, supondo que a idade está obrigada a
suportar culpas duplicadas, mais cínico do que o cinismo que não
pode evitar ter, comentaria com sarcasmo o afectuoso gesto, mas isso
deveria ser porque o vazio da velhice o teria feito esquecer-se de
que, em assuntos do coração e do sentir, sempre o demasiado foi
melhor que o diminuído. Comovida, Marta passou-lhe devagar a mão
pela cabeça, acariciando-o, e, como ele não se retirava e
continuava a olhá-la fixamente, pegou num carvão e começou a
riscar no papel os primeiros traços de um esboço. Ao princípio, as
lágrimas impediam-na de ver bem, mas, pouco a pouco, ao mesmo tempo
que a mão ganhava segurança, os olhos foram aclarando, e a cabeça
do cão, como se emergisse do fundo de uma água turva, apareceu-lhe
na sua inteira beleza e força, no seu mistério e na sua
interrogação. A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão
Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano.
José Saramago, A Caverna
Sem comentários:
Enviar um comentário