As peripécias que me
contas da tua Páscoa nas Ardennes justificariam de facto duas ou
três mortes. Mas na verdade, e embora a Polícia e o Código Penal
não possam evitar que se passe do desejo ao acto, a perspectiva de
uma vida atrás de grades chega para que a maioria de nós se
contente com fantasias. Além disso, devo dizer que na tua idade -
vais fazer dezasseis? - não há nada de alarmante em querer liquidar
os pais. Eu próprio comecei a «matá-los» quando tinha uns doze
anos e, curiosamente, também por causa da Páscoa.
É certo que a Páscoa de
então em pouco se pode comparar com a de hoje. Não havia, por
exemplo, o hábito de nessa altura do ano ir de férias e, ao
contrário de agora, o aspecto religioso certamente predominava sobre
o profano. Na Sexta-Feira Santa o interior das igrejas era um mar
soturno de panos e paramentos roxos, o Sábado de Aleluia desordenava
totalmente a vida doméstica com os preparativos das comezainas do
domingo da Ressurreição. Recebia-se ainda a visita do pároco, que
vinha para benzer as casas. Mal se ouvia a campainha do cortejo
abria-se a porta, espalhava-se um tapete de verdura na soleira, a
família esperava em semicírculo na sala. Enquanto o padre dizia a
sua reza o sacristão retirava o óbolo, discretamente colocado numa
salva sob um guardanapo e, dada a bênção, era de praxe que o
sacerdote e os presentes comessem um petisco ou um doce e bebessem um
copo de vinho fino.
Dessas cerimónias guardo
a recordação de padres entornados e acólitos tão bêbados que, ao
chegar a nossa casa, já vinham incapazes de segurar direito o
crucifixo do Senhor. E algumas vezes aconteceu que, na pressa de
beber, até o óbolo esqueciam, era eu que tinha de correr atrás
deles com o dinheiro.
Mas a Páscoa era para
mim, sobretudo, o tormento do fato novo. Por uma tradição cuja
origem desconheço, o mês antes era o da visita ao alfaiate, um
velho maricas que, nesse tempo sem pronto-a-vestir, lentamente me
apalpava a anatomia sob o aceitável pretexto de tirar a medida. E
que para o fato ficar bem exigia duas provas, por vezes mesmo uma
terceira. Até que um dia, farto daquilo, gritei que não queria fato
novo. Mas como um puto de doze anos tinha então menos direitos que
os escravos da antiga Roma, meu pai levou-me ao alfaiate à força,
com a recomendação de que se abrisse a boca ele me cortava às
fatias. Claro que me poderia ter queixado, e então creio que do
pobre alfaiate não ficaria um osso inteiro. Foi assim que, levado
pelo estranho instinto que em nós manda, preferi a solução
visivelmente menos chocante, e pela primeira vez desejei a morte de
meu pai.
Por isso te digo que não
te perturbes, nem tenhas remorsos dos teus sentimentos. Desde a
Grécia clássica e passando por Freud, por mim, por ti, e pelos
muitos que hão-de vir, o viver é um encadeamento de «assassinatos»
que felizmente se não cometem.
J. Rentes de Carvalho, Mazagran
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