quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Foi numa dessas manhãs pacíficas que nos demos conta de que sobre a terra do pote, entre os galhos da hortênsia, uma melra começara a fazer ninho. Que a planta semimorta não poderia ser regada pouco importava, mas um ninho ali ia-nos impedir de abrir a janela. Enxotámos a melra. O macho, pousado numa árvore, aparentemente desinteressado, cantava a sua canção.
No dia seguinte, porém, quando chegámos a casa, encontrámo-los ambos a trabalhar com tal azáfama que tinham já o ninho quase pronto e seria crueldade enxotá:los. (...)
Passadas cerca de duas semanas tinham nascido os filhotes, e desde então ambos os pais não faziam senão acarretar constantemente a comida para aqueles bicos que se abriam cheios de exigência. Ganharam penugem, cresceram, engordaram, cobriram-se de penas, tornaram-se melros em miniatura, e quando os vimos esforçar-se por abandonar o ninho, compreendemos que não demoraria a que desaparecessem.
Mas como o fariam? Saltar a escassa altura entre o ninho e o chão da varanda parecia obstáculo de pouca monta.
Mas com que forças iriam vencer os vinte e poucos metros que os separavam das árvores?
O chilrear acordou-nos uma manhã muito cedo e, escondidos atrás das cortinas, vimos que três dos pequenitos estavam já no rebordo da varanda. A mãe tinha desaparecido e no ninho o pai, empurrando-os gentilmente, instigava os outros dois a que saltassem. Finalmente, a tremelicar do corpo e das patas, ficaram os cinco alinhados, como recrutas à espera de ordens. E eu, se o não tivesse visto com os meus próprios olhos, teria dificuldade em acreditar no que testemunhei.
Para as forças que tinham a distância era demasiada para um primeiro voo, e a excitação com que o pai saltitava e voejava em torno não bastava para convencê-los a arriscar.
Tiritavam, inclinavam-se para a frente, para trás, agachavam-se incapazes de ficar mais tempo em pé. Foi então que o pai, literalmente, empurrou um deles para o precipício, e assim que as asas do pequenito se puseram pela primeira vez a funcionar, o acompanhou voando a menos dum palmo sob ele, a dar-lhe ao mesmo tempo exemplo e a certeza de que se lhe faltasse a força não havia perigo, pois asas maiores o acolheriam.
Quatro vezes se repetiu essa bela cena de devoção e eu, desde então, não vejo um sem recordar que até dos melros se podem receber lições de amor paternal. 
J. Rentes de Carvalho, Mazagran

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