sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Vou limpar o forno, disse Cipriano Algor quando chegou a casa. As experiências anteriores do cão Achado fizeram-no pensar que o dono se dispunha a sentar-se outra vez no banco das meditações, ainda andaria o pobre com o espírito turvo de conflitos, a vida a correr-lhe às avessas, nestas ocasiões é quando os cães fazem mais falta, quando se vêm postar diante de nós com a infalível pergunta nos olhos, Queres ajuda, e sendo certo que, à primeira vista, não parece estar ao alcance de um animal destes dar remédio aos sofrimentos, angústias e mais aflições humanas, bem poderá suceder que a causa esteja no facto de não sermos nós capazes de perceber o que esteja além ou aquém da nossa humanidade, como se as outras aflições no mundo só pudessem lograr uma realidade apreensível desde que medíveis pelos padrões das nossas próprias, ou, para usar palavras mais simples, como se só o humano tivesse existência. Cipriano Algor não se sentou no banco de pedra, passou-lhe ao lado, depois, tendo movido um após outro os três grossos fechos de bronze instalados em alturas diferentes, em cima, ao meio, em baixo, abriu a porta do forno, que rangeu gravemente nos gonzos. Após os primeiros dias de indagações sensoriais que contentaram a curiosidade imediata de quem acabara de chegar a um novo lugar, o forno tinha deixado de atrair a atenção do cão Achado. Era uma construção velha e bruta de alvenaria, com uma porta alta e estreita, de finalidade desconhecida e onde ninguém vivia, uma construção que tinha na parte superior três coisas como chaminés, mas que certamente o não seriam, uma vez que delas nunca se havia desprendido qualquer instigador cheiro de comida. E agora a porta abrira-se sem esperar e o dono tinha entrado lá para dentro com tanto à vontade como se também aquilo fosse casa sua, como a outra de além. Deve um cão, por cautela e princípio, ladrar a quantas surpresas lhe surjam na vida, porque não poderá saber de antemão se as boas virão a tomar-se em más e se as más deixarão de ser o que foram, portanto Achado ladrou e ladrou, primeiro com inquietação quando a figura do dono pareceu desvair-se na última penumbra do forno, logo feliz ao vê-lo reaparecer inteiro e com a expressão mudada, são os pequenos milagres do amor, querer bem ao que se faz também deveria merecer esse nome. Quando Cipriano Algor tomou a entrar no forno, agora de vassoura em punho, Achado não se preocupou, um dono, bem vistas as coisas, é a modos como o sol e a lua, devemos ser pacientes quando desaparece, esperar que o tempo passe, se pouco se muito não o poderá dizer um cão, que não distingue durações entre a hora e a semana, entre o mês e o ano, para um animal destes não há mais que presença e ausência. Durante a limpeza do forno, Achado não fez menção de entrar, apartou-se a um lado para que não lhe caísse em cima a chuva dos pequenos fragmentos de barro cozido, dos cacos de louças partidas que a vassoura ia empurrando para fora, e deitou-se ao comprido, com a cabeça assente entre as patas. Parecia alheado, quase adormecido, mas até o menos experiente conhecedor de manhas caninas seria capaz de compreender, nada mais que pelo modo dissimulado como de vez em quando o sujeito abria e fechava os olhos, que o cão Achado estava simplesmente à espera. Terminada a tarefa de limpeza, Cipriano Algor saiu do forno e encaminhou-se para a olaria. Enquanto esteve à vista, o cão não se mexeu, logo levantou-se devagar, avançou de pescoço esticado até à entrada do forno e olhou. Era uma casa estranha e vazia, de tecto em abóbada, sem móveis nem adornos, forrada de paralelipípedos esbranquiçados, mas o que mais impressionou o nariz do cão Achado foi a secura extrema do ar que lá dentro se respirava e também a picada intensa do único odor que nele se percebia, o cheiro final de um infinito calcinamento, que não vos surpreenda a flagrante e assumida contradição entre final e infinito, pois não era de sensações humanas que vínhamos tratando, mas do que humanamente nos foi praticável imaginar acerca do que um cão teria sentido quando entrou pela primeira vez num forno de olaria vazio. Ao contrário do que, por natureza, seria de esperar, Achado não deixou marcado de urina o novo sítio. É verdade que principiou por obedecer ao que o instinto lhe ordenava, é verdade que chegou a alçar ameaçadoramente a perna, mas venceu-se, conteve-se no último e derradeiro instante, quem sabe se amedrontado pelo silêncio mineral que o rodeava, pela rudeza tosca da construção, pelo tom branquicento e fantasmagórico do chão e das paredes, quem sabe se, muito mais simplesmente, apenas por suspeitar que o dono usaria de violência contra ele se viesse a encontrar conspurcado de um mijo infame o reino, o trono e o dossel do fogo, o cadinho onde a argila de cada vez sonha que se vai tomar em diamante. Com o pêlo do dorso arrepiado, de rabo entre as pernas como se viesse corrido de longe, o cão Achado saiu do forno. Não viu nenhum dos donos, a casa e o campo estavam como abandonados, e a amoreira-preta, decerto por efeito do ângulo de incidência do sol, parecia projectar uma sombra estranha, que se alastrava pelo solo como se viesse de uma árvore diferente. Ao contrário do que em geral se pensa, os cães, por muitos cuidados e mimos de que sejam alvo, não têm a vida fácil, em primeiro lugar porque até hoje ainda não conseguiram chegar a uma compreensão ao menos satisfatória do mundo a que foram trazidos, em segundo lugar porque essa dificuldade é agravada continuamente pelas contradições e pelas instabilidades de conduta dos seres humanos com quem partilham, por assim dizer, a casa, a comida, e às vezes a cama. Desapareceu o dono, não aparece a dona, o cão Achado desafoga a melancolia e a retenção da bexiga no banco de pedra que não tem mais utilidade do que a de servir para meditações. Foi nesse momento que Cipriano Algor e Marta saíram da olaria. Achado correu para eles, em momentos como este, sim, tem a impressão de que finalmente vai compreender tudo, mas a impressão não durou, nunca dura, o dono soltou-lhe um grito enorme, Fora daqui, a dona gritou alarmada, Quieto, quem poderá alguma vez entender esta gente, o cão Achado só daqui a pouco é que reparará que os donos levam umas figuras de barro em equilíbrio sobre umas pequenas tábuas, três cada um e em cada uma, imagine-se o desastre que sucederia se não me tivessem travado a tempo as efusões. 
José Saramago, A Caverna

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