Vou limpar o forno, disse
Cipriano Algor quando chegou a casa. As experiências anteriores do
cão Achado fizeram-no pensar que o dono se dispunha a sentar-se
outra vez no banco das meditações, ainda andaria o pobre com o
espírito turvo de conflitos, a vida a correr-lhe às avessas, nestas
ocasiões é quando os cães fazem mais falta, quando se vêm postar
diante de nós com a infalível pergunta nos olhos, Queres ajuda, e
sendo certo que, à primeira vista, não parece estar ao alcance de
um animal destes dar remédio aos sofrimentos, angústias e mais
aflições humanas, bem poderá suceder que a causa esteja no facto
de não sermos nós capazes de perceber o que esteja além ou aquém
da nossa humanidade, como se as outras aflições no mundo só
pudessem lograr uma realidade apreensível desde que medíveis pelos
padrões das nossas próprias, ou, para usar palavras mais simples,
como se só o humano tivesse existência. Cipriano Algor não se
sentou no banco de pedra, passou-lhe ao lado, depois, tendo movido um
após outro os três grossos fechos de bronze instalados em alturas
diferentes, em cima, ao meio, em baixo, abriu a porta do forno, que
rangeu gravemente nos gonzos. Após os primeiros dias de indagações
sensoriais que contentaram a curiosidade imediata de quem acabara de
chegar a um novo lugar, o forno tinha deixado de atrair a atenção
do cão Achado. Era uma construção velha e bruta de alvenaria, com
uma porta alta e estreita, de finalidade desconhecida e onde ninguém
vivia, uma construção que tinha na parte superior três coisas como
chaminés, mas que certamente o não seriam, uma vez que delas nunca
se havia desprendido qualquer instigador cheiro de comida. E agora a
porta abrira-se sem esperar e o dono tinha entrado lá para dentro
com tanto à vontade como se também aquilo fosse casa sua, como a
outra de além. Deve um cão, por cautela e princípio, ladrar a
quantas surpresas lhe surjam na vida, porque não poderá saber de
antemão se as boas virão a tomar-se em más e se as más deixarão
de ser o que foram, portanto Achado ladrou e ladrou, primeiro com
inquietação quando a figura do dono pareceu desvair-se na última
penumbra do forno, logo feliz ao vê-lo reaparecer inteiro e com a
expressão mudada, são os pequenos milagres do amor, querer bem ao
que se faz também deveria merecer esse nome. Quando Cipriano Algor
tomou a entrar no forno, agora de vassoura em punho, Achado não se
preocupou, um dono, bem vistas as coisas, é a modos como o sol e a
lua, devemos ser pacientes quando desaparece, esperar que o tempo
passe, se pouco se muito não o poderá dizer um cão, que não
distingue durações entre a hora e a semana, entre o mês e o ano,
para um animal destes não há mais que presença e ausência.
Durante a limpeza do forno, Achado não fez menção de entrar,
apartou-se a um lado para que não lhe caísse em cima a chuva dos
pequenos fragmentos de barro cozido, dos cacos de louças partidas
que a vassoura ia empurrando para fora, e deitou-se ao comprido, com
a cabeça assente entre as patas. Parecia alheado, quase adormecido,
mas até o menos experiente conhecedor de manhas caninas seria capaz
de compreender, nada mais que pelo modo dissimulado como de vez em
quando o sujeito abria e fechava os olhos, que o cão Achado estava
simplesmente à espera. Terminada a tarefa de limpeza, Cipriano Algor
saiu do forno e encaminhou-se para a olaria. Enquanto esteve à
vista, o cão não se mexeu, logo levantou-se devagar, avançou de
pescoço esticado até à entrada do forno e olhou. Era uma casa
estranha e vazia, de tecto em abóbada, sem móveis nem adornos,
forrada de paralelipípedos esbranquiçados, mas o que mais
impressionou o nariz do cão Achado foi a secura extrema do ar que lá
dentro se respirava e também a picada intensa do único odor que
nele se percebia, o cheiro final de um infinito calcinamento, que não
vos surpreenda a flagrante e assumida contradição entre final e
infinito, pois não era de sensações humanas que vínhamos
tratando, mas do que humanamente nos foi praticável imaginar acerca
do que um cão teria sentido quando entrou pela primeira vez num
forno de olaria vazio. Ao contrário do que, por natureza, seria de
esperar, Achado não deixou marcado de urina o novo sítio. É
verdade que principiou por obedecer ao que o instinto lhe ordenava, é
verdade que chegou a alçar ameaçadoramente a perna, mas venceu-se,
conteve-se no último e derradeiro instante, quem sabe se amedrontado
pelo silêncio mineral que o rodeava, pela rudeza tosca da
construção, pelo tom branquicento e fantasmagórico do chão e das
paredes, quem sabe se, muito mais simplesmente, apenas por suspeitar
que o dono usaria de violência contra ele se viesse a encontrar
conspurcado de um mijo infame o reino, o trono e o dossel do fogo, o
cadinho onde a argila de cada vez sonha que se vai tomar em diamante.
Com o pêlo do dorso arrepiado, de rabo entre as pernas como se
viesse corrido de longe, o cão Achado saiu do forno. Não viu nenhum
dos donos, a casa e o campo estavam como abandonados, e a
amoreira-preta, decerto por efeito do ângulo de incidência do sol,
parecia projectar uma sombra estranha, que se alastrava pelo solo
como se viesse de uma árvore diferente. Ao contrário do que em
geral se pensa, os cães, por muitos cuidados e mimos de que sejam
alvo, não têm a vida fácil, em primeiro lugar porque até hoje
ainda não conseguiram chegar a uma compreensão ao menos
satisfatória do mundo a que foram trazidos, em segundo lugar porque
essa dificuldade é agravada continuamente pelas contradições e
pelas instabilidades de conduta dos seres humanos com quem partilham,
por assim dizer, a casa, a comida, e às vezes a cama. Desapareceu o
dono, não aparece a dona, o cão Achado desafoga a melancolia e a
retenção da bexiga no banco de pedra que não tem mais utilidade do
que a de servir para meditações. Foi nesse momento que Cipriano
Algor e Marta saíram da olaria. Achado correu para eles, em momentos
como este, sim, tem a impressão de que finalmente vai compreender
tudo, mas a impressão não durou, nunca dura, o dono soltou-lhe um
grito enorme, Fora daqui, a dona gritou alarmada, Quieto, quem poderá
alguma vez entender esta gente, o cão Achado só daqui a pouco é
que reparará que os donos levam umas figuras de barro em equilíbrio
sobre umas pequenas tábuas, três cada um e em cada uma, imagine-se
o desastre que sucederia se não me tivessem travado a tempo as
efusões.
José Saramago, A Caverna
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