Eu fora obrigada a entrar
no deserto para saber com horror que o deserto é vivo, para saber
que uma barata é a vida. Havia recuado até saber que em mim a vida
mais profunda é antes do humano - e para isso eu tivera a coragem
diabólica de largar os sentimentos. Eu tivera que não dar valor
humano à vida para poder entender a largueza, muito mais que humana,
do Deus. Havia eu pedido a coisa mais perigosa e proibida? arriscando
a minha alma, teria eu ousadamente exigido ver Deus?
E agora eu estava como
diante Dele e não entendia - estava inutilmente de pé diante Dele,
e era de novo diante do nada. A mim, como a todo o mundo, me fora
dado tudo, mas eu quisera mais: quisera saber desse tudo. E vendera a
minha alma para saber. Mas agora eu entendia que não a vendera ao
demônio, mas muito mais perigosamente: a Deus. Que me deixara ver.
Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse: a explicação de
um enigma é a repetição do enigma. O que És? e a resposta é: És.
O que existes? e a resposta é: o que existes. Eu tinha a capacidade
da pergunta, mas não a de ouvir a resposta.
Não, nem a pergunta eu
soubera fazer. No entanto, a resposta se impunha a mim desde que eu
nascera. Fora por causa da resposta contínua que eu, em caminho
inverso, fora obrigada a buscar a que pergunta ela correspondia.
Então eu me havia perdido num labirinto de perguntas, e fazia
perguntas a esmo, esperando que uma delas ocasionalmente
correspondesse à da resposta, e então eu pudesse entender a
resposta.
Mas era como uma pessoa
que, tendo nascido cega e não tendo ninguém a seu lado que tivesse
tido visão, essa pessoa não pudesse sequer formular uma pergunta
sobre a visão: ela não saberia que existia ver. Mas, como na
verdade existia a visão, mesmo que essa pessoa em si mesma não
soubesse e nem tivesse ouvido falar, essa pessoa estaria parada,
inquieta, atenta, sem saber perguntar sobre o que não sabia que
existe - ela sentiria falta do que deveria ser seu.
Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H.
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