quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Goldmundo, nos primeiros tempos da nova peregrinação, nas primeiras vertigens da liberdade recuperada, teve que reaprender a vida nómada dos viandantes, sem sujeição a horas. Livres de qualquer disciplina, dependentes apenas do tempo e das estações do ano, sem um alvo na frente, sem tecto por cima da cabeça, sem nada possuírem e expostos a todos os acasos, gozam os vagabundos uma vida pueril e corajosa, frugal e forte. São os filhos de Adão, expulso do paraíso, e os irmãos dos bichos inocentes. Recebem do céu, hora a hora, o que lhes é dado: sol e chuva, névoa e neve, calor e frio, bem-estar e privações; para eles, não há nem tempo, nem história, nem ambição, nem os estranhos ídolos de evolução e progresso em que os proprietários acreditam tão desesperadamente. O vagabundo pode ser delicado ou rude, hábil ou desajeitado, corajoso ou timorato, mas tem sempre um coração de criança, vive sempre no dia anterior ao início da história do mundo, norteia a sua vida por poucos instintos e necessidades elementares. Pode ser arguto ou tolo; pode saber, no mais profundo da sua alma, que a vida é frágil e transciente, que todo o ser vivente arrasta, pobre e angustiado, a sua gota de sangue quente através da algidez dos espaços universais; pode obedecer apenas às ordens do seu estômago, infantil e sofregamente: em qualquer caso é a antítese e o inimigo mortal do proprietário e sedentário, que o odeia, despreza e teme porque não quer que lhe lembrem nem a contingente existência, nem a permanente caducidade da vida, nem a morte inflexível e implacável, que nos rodeia e preenche o universo.
A puerilidade da vida dos vagabundos, a sua ascendência materna, o seu afastamento da lei e do espírito, a sua vida arriscada e em secreta e constante proximidade da morte, tinham, há muito, profundamente dominado e marcado a alma de Goldmundo.
Hermann Hesse, Narciso e Goldmundo

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