A deseroização de mim
mesma está minando subterraneamente o meu edifício, cumprindo-se à
minha revelia como uma vocação ignorada. Até que me seja enfim
revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
E eu também não tenho
nome, e este é o meu nome. E porque me despersonalizo a ponto de não
ter o meu nome, respondo cada vez que alguém disser: eu.
A deseroização é o
grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar porque é
tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim
atingir a altura de poder cair - só posso alcançar a
despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda uma voz.
Minhas civilizações eram necessárias para que eu subisse a ponto
de ter de onde descer. É exatamente através do malogro da voz que
se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a
das coisas, e aceitá-la como a possíve1linguagem. Só então minha
natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor
não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a
nossa condição como a única possível, já que ela é o que
existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A
condição humana é a paixão de Cristo.
Ah, mas para se chegar à
mudez, que grande esforço da voz. Minha voz é o modo como vou
buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem, existe
como um pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou
impelida a precisar saber o que o pensamento pensa. A realidade
antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore,
mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão
do mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo,
e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do
silêncio.
Eu tenho à medida que
designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho
muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a
matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la - e como não
acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia,
e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço
humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as
mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me
poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando
falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
E é inútil procurar
encurtar caminho e querer começar, já sabendo que a voz diz pouco,
já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a
trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós
mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A
via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega
senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a
desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou
o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a
desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a
escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante
humano. E só esta é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma
revelação.
Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H.
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