A desistência é uma
revelação.
Desisto, e terei sido a
pessoa humana - é só no pior de minha condição que esta é
assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício
de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe.
Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que
me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço - viver me
deixa tão impressionada, viver me tira o sono.
(...)
Senti que meu rosto em
pudor sorria. Ou talvez não sorrisse, não sei. Eu confiava.
Em mim? no mundo? no Deus?
na barata? Não sei. Talvez confiar não seja em quê ou em quem.
Talvez eu agora soubesse que eu mesma jamais estaria à altura da
vida, mas que minha vida estava à altura da vida. Eu não alcançaria
jamais a minha raiz, mas minha raiz existia. Timidamente eu me
deixava transpassar por uma doçura que me encabulava sem me
constranger.
Oh Deus, eu me sentia
batizada pelo mundo. Eu botara na boca a matéria de uma barata, e
enfim realizara o ato ínfimo.
Não o ato máximo, como
antes eu pensara, não o heroísmo e a santidade. Mas enfim o ato
ínfimo que sempre me havia faltado. Eu sempre fora incapaz do ato
ínfimo. E como o ato ínfimo, eu me havia deseroizado. Eu, que havia
vivido do meio do caminho, dera enfim o primeiro passo de seu começo.
Enfim, enfim quebrara-se
realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu
era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu,
eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois «eu» é apenas um
dos espasmos instantâneos do mundo. Minha vida não tem sentido
apenas humano, é muito maior - é tão maior que, em relação ao
humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que
eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. Mas agora, eu
era muito menos que humana - e só realizaria o meu destino
especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando,
ao que já não era eu, ao que já é inumano.
E entregando-me com a
confiança de pertencer ao desconhecido.
(...)
E tal entrega é o único
ultrapassamento que não me exclui. Eu estava agora tão maior que já
não me via mais. Tão grande como uma paisagem ao longe. Eu era ao
longe.
(...)
O mundo independia de mim
- esta era a confiança a que eu tinha chegado: o mundo independia de
mim, e não estou entendendo o que estou dizendo, nunca! nunca mais
compreenderei o que eu disser. Pois como poderia eu dizer sem que a
palavra mentisse por mim? como poderei dizer senão timidamente
assim: a vida se me é. A vida se me é, e eu não entendo o que
digo. E então adoro. - - - - - -
Clarice Lispector, A Paixão segundo G.H.
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