domingo, 25 de janeiro de 2015

A partir dessa noite em que aquele homem que eu venerava acima de todos me abriu o seu destino como quem abre uma concha, a partir dessa noite, já lá vão quarenta anos, tudo o que os nossos escritores e poetas contam nos livros como algo extraordinário e todas as tragédias que as peças de teatro arquitectam nos bastidores do palco me pareceram pueris e sem importância. Será por comodismo, cobardia ou vistas curtas que todos se contentam com dar contornos visíveis à camada superior e iluminada da vida, onde os sentidos brincam aberta e legitimamente, enquanto lá em baixo, nas caves, nas cavernas profundas e nas cloacas do coração, se agitam, em emanações fosforescentes, as bestas realmente perigosas da paixão, acasalando e dilacerando-se na sombra, e assumindo as mais fantásticas formas de envolvimento?
Sentir-se-ão amedrontados pelo sopro ardente e devorador dos instintos demoníacos, pelo vapor do sangue abrasador? Terão medo de sujar as mãos delicadas nas úlceras da humanidade, o seu olhar, habituado a uma luz mais fosca, não será capaz de os fazer descer estes degraus escorregadios, perigosos, atolados na putrefacção? E, no entanto, para quem detém o saber, nenhuma alegria é comparável à que está oculta, nenhum arrepio é tão poderoso como o que gela o perigo, nenhum sofrimento é mais sagrado do que aquele que, temeroso, não ousa manifestar-se.
Mas aqui era um homem que se me revelava em toda a sua nudez; aqui, um homem rasgava o que de mais íntimo havia no seu peito, disposto a pôr a nu o pulsar de um coração envenenado, consumido, supurado. Naquela confissão reprimida anos a fio, havia uma volúpia selvagem que se martirizava, se flagelava. Só alguém que toda a vida tivesse sentido vergonha, se tivesse humilhado e escondido, conseguiria formular com aquele inebriamento transbordante uma confissão tornada inexorável. Um homem arrancava do peito a sua vida pedaço a pedaço, e naquela hora, eu, que não passava de um miúdo, vislumbrei pela primeira vez as profundezas inconcebíveis do sentimento humano.
Primeiro a voz vagueou, imaterial, pela sala, como um fumo turvo, libertando-se da emoção, numa alusão insegura a acontecimentos secretos; no entanto, sentia-se, pela dor com que o arrebatamento era controlado, que ia irromper em fúria, como quando, em certos trechos musicais, os nervos pressentem a veemência do furioso no ritmo violentamente moderado dos compassos que o antecedem. Depois, porém, as imagens irromperam com um brilho rutilante, elevando-se, frementes, acima do arrebatamento da tempestade interior, tornando-se, aos poucos, mais claras.
Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos 

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