sábado, 31 de janeiro de 2015

Mas foi só exteriormente e de um ponto de vista político que se evitou o descalabro radical naqueles primeiros anos do pós-guerra; a nível interno teve lugar uma revolução de grandes proporções - juntamente com os exércitos, algo mais tinha sido derrotado: a crença na infalibilidade das autoridades, crença essa na qual a nossa própria juventude tinha sido educada em espírito de excessiva submissão. Mas teria sido possível aos alemães continuarem a admirar o seu imperador que jurara lutar «até ao último sopro de homem e montada» e que, a coberto da noite e do nevoeiro, se escapulira para o outro lado da fronteira, ou os comandantes dos exércitos, os políticos ou os poetas que incessantemente tinham rimado Krieg (guerra) com Sieg (vitória) e Not (necessidade) com Tod (morte)? O horror só agora se manifestava, agora que o fumo da pólvora se tinha dissipado sobre o país, agora que se tornava evidente a devastação causada pela guerra. Como poderia ainda ser considerado sagrado um mandamento moral que, ao longo de quatro anos, autorizara morticínios e pilhagens sob o epíteto de heroísmo e de requisição? Como havia um povo de acreditar nas promessas do Estado que se esquivara a todas as obrigações incómodas que tinha perante os cidadãos? (...) Uma juventude inteiramente nova já não acreditava nos pais, nos políticos, nos professores; qualquer determinação, qualquer proclamação do Estado era lida com olhar desconfiado. De uma penada, a geração do pós-guerra emancipou-se brutalmente de tudo quanto até aí fora válido e voltou as costas a todas as tradições, decidida a tomar em mãos o seu destino, longe do passado que ficara para trás e lançando-se para o futuro. Um mundo inteiramente novo, uma ordem inteiramente diferente deveria nascer com ela em todos os âmbitos de vida; e como é natural, o começo foi marcado por exageros descontrolados. Quem não fosse, ou tudo aquilo que não fosse da sua faixa etária era posto de lado. Em vez de viajarem com os pais, como dantes, os miúdos de onze, doze anos, rumavam pelo país fora até à Itália ou ao Mar do Norte, organizados em grupos designados de Wandervögel e perfeitamente esclarecidos sobre questões sexuais. Nas escolas organizaram-se conselhos de alunos de acordo com o modelo russo, que vigiavam os professores e o «plano de estudos», subvertendo-o, pois as crianças só deviam e só queriam aprender o que lhes agradasse. A revolta ocorria pelo simples prazer da revolta, contra as formas estabelecidas, até mesmo contra a vontade da natureza, contra a eterna polaridade dos sexos. As raparigas usavam o cabelo tão curto, à la garçonne, que não era possível distingui-las dos rapazes; por seu lado, os homens rapavam a barba para parecerem mais femininos; a homossexualidade e o lesbianismo tornaram-se numa grande moda, não por uma questão de inclinação natural, mas como protesto contra as formas tradicionais, legais, normais do amor. Todos os modos de expressão da existência se esforçavam por pôr em destaque o seu carácter radical e revolucionário, e claro que a arte não constituiu excepção. A nova pintura declarou como ultrapassado tudo o que Rembrandt, Holbein e Velázquez haviam criado, e deu início às mais impetuosas experiências cubistas e surrealistas. Em todo o lado o elemento inteligível se viu proscrito, a melodia na música, a semelhança no retrato, a clareza na linguagem. Os artigos da língua alemã der, die, das foram eliminados, a sintaxe posta de pernas para o ar, a escrita tornada «oblíqua» e «fresca», em estilo de telegrama, com interjeições ardentes; além disso, toda a literatura que não fosse activista, ou seja, que não fosse teorização política, era atirada para o caixote do lixo. A música procurava obstinadamente uma tonalidade nova e desarticulava os compassos, a arquitectura voltava as casas do avesso; na dança, a valsa desapareceu a favor de figuras cubanas e negróides; a moda, ao sublinhar energicamente a nudez, inventava constantemente novas absurdidades; no teatro representava-se Hamlet em fraque e experimentavam-se dramaturgias explosivas. Em todos os campos se deu início a uma época da mais arrebatada experimentação, tendente, através de um único salto fogoso, a ultrapassar tudo o que existira, tudo o que se fizera, tudo o que se alcançara; quanto mais jovem uma pessoa fosse, quanto menos tivesse aprendido, tanto mais bem recebida era, pois não estava ligada a nenhuma tradição - finalmente a juventude dava triunfalmente largas à sua desforra contra o mundo dos nossos pais. Mas no meio deste carnaval desregrado, nada me oferecia um espectáculo mais trágico-cómico do que ver até que ponto muitos intelectuais da geração mais velha, levados pelo pânico de serem ultrapassados e considerados «desactualizados», se maquilhavam com uma selvajaria artificial, num apressado desespero, tentando também, desajeitadamente, e em passo manquejante, seguir os caminhos manifestamente mais aberrantes. Honestos e honrados professores da academia, de barbas grisalhas, pintavam cubos e hexaedros por cima das suas «naturezas mortas» de outrora, que agora ninguém comprava, só porque os jovens directores (por todo o lado os jovens eram agora procurados, ou melhor: os mais jovens) retiravam das galerias todos os outros quadros, considerados demasiado «clássicos», remetendo-os para o depósito. Escritores que anos a fio tinham escrito num alemão equilibrado e claro, mutilavam obedientemente as suas frases e excediam-se em «activismo»; conselheiros de Estado prussianos, refastelados na vida, ensinavam Karl Marx a partir da cátedra; bailarinas da corte, já de certa idade, apresentavam-se nuas a três quartos, dançando com contorções «forçadas» a Appassionata de Beethoven e a Verklärte Nacht (Noite Transfigurada) de Schönberg, Por toda a parte, os mais velhos corriam desnorteados atrás da última moda; de repente, já só havia uma ambição: a de ser «jovem» e de inventar rapidamente, atrás de uma tendência que ontem ainda era actual, uma outra ainda mais actual, mais radical, nunca vista até então.
Que época selvagem, anárquica, inverosímil, a daqueles anos em que, com a desvalorização do dinheiro, todos os outros valores na Áustria e na Alemanha começaram a resvalar! Um período de êxtase entusiástico e de vertigem descontrolada, uma mistura única de impaciência e fanatismo. Tudo o que era extravagante e incontrolável conheceu uma época de ouro: teosofia, ocultismo, espiritismo, sonambulismo, antroposofia, quiromancia, grafologia, ioga indiano e misticismo paracelsiano. Tudo o que prometesse estados de extrema intensidade para além do que então se conhecia, rodo o tipo de estupefacientes, mórfio, cocaína e heroína, tudo se vendia num instante; nas peças de teatro, o incesto e o parricídio, na política, o comunismo ou o fascismo, constituíam os únicos temas apetecidos, pelo seu extremismo; incondicionalmente banida estava, em contrapartida, qualquer forma de normalidade, de moderação. Mas não desejaria que esta época caótica não fizesse parte da minha vida pessoal e do desenvolvimento da arte. Como qualquer revolução espiritual que irrompe orgiasticamente no primeiro arrebatamento, ela limpou o ar de tudo o que era sufocantemente tradicional, permitiu descarregar as tensões acumuladas durante muitos anos e, seja como for, muitos estímulos valiosos ficaram das suas experiências arrojadas. Por muito que os seus exageros nos causassem estranheza, não nos sentíamos no direito de a censurar e de a rejeitar com arrogância, pois no fundo aquela nova juventude procurava corrigir - ainda que com impetuosidade e impaciência excessivas - o que a nossa geração tinha negligenciado com a sua prudência e isolamento. No fundo, o seu instinto era justo: o tempo do pós-guerra tinha de ser diferente do tempo anterior à guerra - e nós, os mais velhos, não tínhamos desejado também um mundo novo, um mundo melhor, antes da guerra e durante a guerra? É verdade que, depois da guerra, nós, os mais velhos, tínhamos mostrado uma vez mais a nossa incapacidade em contrapor atempadamente uma organização supranacional à perigosa repolitização do mundo.
Stefan Zweig, O Mundo de Ontem

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