domingo, 25 de janeiro de 2015

Nunca vira nada assim: um discurso todo ele êxtase, uma exposição eivada de paixão como um fenómeno elementar; e tudo o que aqui havia de imprevisto forçou-me, como se estivesse a ser empurrado, a avançar. Sem dar conta de que me movia, hipnoticamente atraído por um poder mais forte do que a curiosidade, com passo mecânico, como um sonâmbulo, fui puxado, como que por magia, para aquele círculo restrito. Sem que desse por isso, encontrei-me a dois metros do orador, entre os outros, que estavam, por seu lado, demasiado fascinados para darem por mim, ou por qualquer outra coisa. Levado pela torrente do discurso, arrastado pelo seu jorrar, não sabia sequer o que lhe dera origem: algum dos estudantes teria por certo evocado Shakespeare como um fenómeno meteórico, e o homem que eu ali via dava tudo de si para mostrar que o poeta era, vejam só, a expressão mais poderosa, o testemunho espiritual de uma geração inteira - a expressão sensível de uma época toda feita de paixão. Com gesto largo, descrevia aquela hora extraordinária da Inglaterra, aquele segundo de êxtase único que irrompe de imprevisto na vida dos povos, tal como na das pessoas, concentrando todas as energias num impulso poderoso para a eternidade. De súbito, a Terra tornara-se maior, um novo continente fora descoberto, ao mesmo tempo que a potência mais antiga do velho, o papado, ameaçava ruir: atrás dos mares que agora pertencem aos ingleses, desde que o vento e as vagas destroçaram a Armada espanhola, novas possibilidades surgem de repente; o universo cresce e, instintivamente, a alma não lhe quer ficar atrás - também ela quer expandir-se, também ela quer penetrar nas profundezas extremas do bem e do mal. Quer expandir-se e conquistar, como os conquistadores; precisa de uma nova língua, de uma nova força. Da noite para o dia, assiste-se então ao eclodir daqueles que vão falar essa língua: os poetas. São cinquenta, cem só numa década, companheiros rebeldes e livres que, ao contrário dos poetaços da corte que os antecederam, não cultivam os Jardins da Arcádia nem põem em verso uma mitologia selecionada. Tomam o teatro de assalto; o seu campo de batalha são as arenas onde outrora apenas havia animais a que se lançava a caça ou jogos sangrentos, e as suas obras ainda estão impregnadas do sabor do sangue quente; o próprio drama é um circus maximus, onde as feras do sentimento se precipitam, esfaimadas, umas sobre as outras. Como leões, libertam o furor dos seus corações apaixonados; procuram superar-se em selvajaria e em exaltação, tudo é consentido na sua representação, tudo é permitido: incesto, assassínio, delito, crime; em tumulto, desenfreados, os instintos humanos celebram uma orgia escaldante. Tal como outrora os animais famintos fora das jaulas, paixões inebriadas precipitam-se agora rugindo, ameaçadoras, para a arena cercada de estacas. A explosão é violenta, semelhante à de um petardo - uma explosão única, que dura meio século, um banho de sangue, uma ejaculação, uma selvajaria sem paralelo que fila o mundo nas suas garras e o dilacera. Nesta orgia da força humana, mal se ouve a individualidade da voz e da personalidade. O fogo sagrado passa de mão em mão, cada um aprende com o parceiro, roubam-se entre si, batem-se para superar e ultrapassar os outros; no entanto, todos eles são gladiadores de uma só festa, escravos libertos dos grilhões que o génio da hora chicoteia e impulsiona. Vai buscá-los aos meios imundos e obscuros dos subúrbios, mas também aos palácios: Ben Jonson, neto de maçon; Marlowe, filho de sapateiro; Massinger, descendente de um camareiro; Philipp Sidney, estadista rico e culto. Contudo, o turbilhão de fogo arrasta-os a todos na mesma roda infernal; hoje são celebrados, amanhã estão à míngua, Kyd, Heywood, afundados na maior das misérias, desfalecem de fome, como Spenser em King Street; todos eles levam uma vida marginal - arruaceiros, com ligações assíduas a prostitutas, comediantes, escroques -, mas poetas, poetas todos o são. Shakespeare é apenas o seu centro, «the very age and body of the time»; mas é tal o ímpeto deste tumulto, com obras a brotar em catadupa, e é tal o emaranhado de paixões que nem tempo há para o separar dos outros. E, de súbito, convulsivamente, como após um parto, esta erupção da humanidade, de todas a mais esplendorosa, pára de novo: o drama chega ao fim, a Inglaterra está exaurida, e a névoa cinzenta e húmida do Tamisa abate-se também sobre o espírito. Com uma impetuosidade sem paralelo, uma geração inteira galgou os picos da paixão, desceu aos seus abismos, pondo ardentemente a nu toda a exuberância e toda a loucura da sua alma. Agora, o país está cansado, extenuado; um puritanismo tacanho encerra os teatros, pondo assim fim às manifestações efusivas de paixão; a Bíblia retoma a palavra, a palavra divina, lá onde a mais humana de todas as palavras ousara a mais ardente confissão de todos os tempos e onde uma geração possuída de um ardor sem par vivera, de uma só vez, por milhares de outras.
Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos

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