quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O morto era grisalho. Tinha duas grandes ondas grisalhas na fronte. Mas não era velho. O rosto era comprido e o nariz ossudo e ligeira e delicadamente torto. As sobrancelhas estavam erguidas como se tivesse mergulhado no pensamento final. Agora estava, por fim, com ele, após terem terminado todas as distrações e quando a sua carne já não era carne. E Wilhelm ficou tão impressionado com este aspeto meditativo que não conseguia afastar-se. Apesar do sentimento de terror e da sensação de desespero que experimentou de seguida, não podia continuar. Saiu da fila e deixou-se ficar junto ao caixão; os seus olhos encheram-se silenciosamente e, através das lágrimas imóveis, observou o homem enquanto a fila de visitantes passava, com olhares velados, pelo caixão acetinado em direção ao conjunto de lírios, lilases e rosas.(...) Afastando-se um pouco, Wilhelm começou a chorar... De início, chorou suave e sentimentalmente, mas, em breve, devido a uma emoção mais profunda, soluçava alto e o seu rosto tomou-se distorcido e quente e as lágrimas agarraram-se-lhe à pele. Um homem - uma outra criatura humana, foi o que primeiro lhe acorreu ao pensamento, mas desprenderam-se dele outras coisas diferentes. O que vou fazer? Estou teso e despedido... Oh, pai, o que é que te peço? O que vou fazer com os miúdos... Tommy, Paul? Os meus filhos. E Olive? Minha querida! Ora, ora, ora... Tens de me proteger daquele diabo que quer a minha vida. Se a queres, então, mata-me. Tira-ma, tira-ma. tira-ma.
Em breve esgotou as palavras, a sensatez, a coerência. A fonte de todas as lágrimas abrira-se de repente dentro dele, negra, profunda e quente, e elas jorravam e convulsionavam-lhe o corpo, vergando-lhe a cabeça teimosa, encurvando-lhe os ombros, retorcendo-lhe o rosto, enclavinhando-lhe as mesmas mãos com que segurava o lenço. Os seus esforços para se dominar eram inúteis. O enorme nó de injustiça e dor que tinha na garganta subiu, e abandonou-se inteiramente; segurou na face e chorou. Chorou com todo o coração.
Era ele o único, entre todas as pessoas que enchiam a capela, que soluçava. Ninguém sabia quem era. Uma mulher disse:
- Talvez seja o primo de Nova Orleães de que estavam à espera.
- Tem de ser alguém muito íntimo para se comportar daquela forma.
- Meu Deus, meu Deus! Ser chorado deste modo - disse um homem que olhou para os ombros de Wilhelm, que se agitavam fortemente, para o seu rosto fechado e cabelo loiro encanecido, com uns olhos abertos, brilhantes e invejosos.
- O irmão do morto, talvez?
- Oh, duvido muito - disse outro dos presentes. - Não são nada parecidos. São como o dia e a noite.
As flores e as luzes fundiam-se estaticamente nos olhos cegos e molhados de Wilhelm; a música pesada e oceânica chegava-lhe aos ouvidos. Penetrava-o, ali onde se escondera no centro de uma multidão, por meio do grande e feliz olvido das lágrimas. Ouviu-a, e passou além da pena, por meio de soluços rasgados e lágrimas, para a consumação da derradeira exigência do seu coração. 
Saul Bellow, Agarra o Dia

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