sábado, 9 de maio de 2015

(...) A cerimónia ficou marcada para o dia seguinte; ele pegou na caneta e, em belas
letras redondas, começou a escrever os nossos nomes no seu livro.
Naquele preciso momento - deviam ser umas onze horas - a porta da sala contígua abriu-se com violência. Um jovem funcionário irrompeu por ali dentro, vestindo o casaco à pressa: «Os alemães invadiram a Polónia. É a guerra!», gritou em voz bem alta no silêncio da sala. Aquela palavra bateu-me no coração como uma martelada. Mas o coração da nossa geração já está habituado a todo o tipo de rudes golpes. «Não tem de ser já a guerra», disse eu, com sincera convicção. Mas o funcionário quase se mostrou rancoroso. «Não», gritou com veemência, «já basta! Não podemos permitir que todos os seis meses se repita a mesma coisa! Agora tem mesmo de se acabar com isto!»
Entretanto, o outro funcionário, que já tinha começado a redigir a nossa certidão de casamento, pousou pensativamente a caneta. Vendo bem, éramos estrangeiros, reflectiu ele, e em caso de guerra tornávamo-nos automaticamente estrangeiros inimigos. Que não sabia se, em tais circunstâncias, o casamento ainda poderia ser consumado. Que lamentava, mas que, em qualquer caso, precisava de pedir instruções a Londres. - Seguiram-se ainda dois dias de espera, de esperança, de receio, dois dias da mais terrível tensão. E, no domingo de manhã, a rádio anunciou que a Inglaterra tinha declarado guerra à Alemanha.
Foi uma manhã estranha. Sem dizer nada, afastámo-nos do rádio que tinha lançado para o quarto uma mensagem que haveria de sobreviver aos séculos, uma mensagem destinada a modificar completamente o nosso mundo e a vida de cada um de nós. Uma mensagem, na qual estava implícita a morte de milhares daqueles que a tinham escutado em silêncio, o luto e a desgraça, o desespero e a ameaça para todos nós, e, só passados muitos e muitos anos, talvez um sentido criador. Era outra vez a guerra, uma guerra mais terrível e mais abrangente do que alguma outra o fora à face da Terra. Uma época chegava de novo ao fim, de novo começava outra época. Ficámos em silêncio no quarto, também ele tornado de repente completamente silencioso, e evitámos olhar-nos. De fora, vinha o chilrear despreocupado dos pássaros que se deixavam levar pelo vento tépido durante os seus leves jogos amorosos, e as árvores eram embaladas pelo brilho dourado da luz, como se as suas folhas quisessem tocar-se com a ternura de lábios. Mais uma vez, a velha mãe-natureza nada mostrava saber das preocupações das suas criaturas.
Dirigi-me ao meu quarto e juntei as minhas coisas numa maleta. Se viesse a confirmar-se o que me dissera um amigo altamente colocado, então nós, os austríacos, iríamos ser equiparados aos alemães na Inglaterra e teríamos de contar com as mesmas restrições; talvez nessa noite já não me fosse permitido dormir na minha cama. Tinha descido de novo um degrau, de há uma hora para cá já não era apenas um estrangeiro neste país, mas um enemy alien, um estrangeiro inimigo, banido à força para um lugar onde o meu coração palpitante não pulsava. Pois seria possível imaginar situação mais absurda do que a de alguém, que, devido à sua raça e à sua mentalidade, fora havia muito rechaçado de uma Alemanha que o estigmatizara como anti-alemão, e que agora, num outro país, e devido a um decreto burocrático, era integrado à força numa comunidade da qual, enquanto austríaco, nunca fizera parte? De uma só penada, o sentido de uma vida inteira tinha-se transformado num sem-sentido; eu ainda escrevia e ainda continuava a pensar em língua alemã, mas cada pensamento que me ocorria, cada desejo que sentia estava com os países que tinham pegado em armas pela liberdade do mundo. Todas as outras ligações, tudo o que era passado e acabado, tinha sido dilacerado, destroçado, e eu sabia que, quando esta guerra chegasse ao fim, tudo teria de apontar para um novo começo. Pois a tarefa que me tocava mais no fundo e na qual eu tinha depositado toda a energia da minha convicção ao longo de quarenta anos, a união política da Europa, fracassara. Aquilo que eu tinha receado mais do que a própria morte, a guerra de todos contra todos, estava em marcha pela segunda vez. E numa hora que, mais do que nenhuma outra, exigia um inabalável sentido de solidariedade, aquele que apaixonadamente se tinha esforçado uma vida inteira pela união no plano humano e no plano espiritual, sentia-se mais inútil e mais só do que nunca, devido a este súbito ostracismo.
Desci uma vez mais à cidade, disposto a lançar um último olhar à paz. A cidade lá estava, serena, à luz do meio-dia, e não me parecia diferente do habitual. As pessoas seguiam o caminho de sempre, no seu passo do costume, sem pressas, sem se juntarem em grupos faladores. A sua atitude era domingueiramente calma e descontraída, e por um instante perguntei a mim próprio: será que afinal ainda não sabem de nada? Mas tratando-se de ingleses, estavam habituados a controlar as suas emoções. Não precisavam de estandartes nem de tambores, de barulho nem de música para reforçarem a sua determinação forte e despida de patético. Que diferentes tinham sido aqueles dias de Junho de 1914, na Áustria, e que diferente era eu hoje também do jovem inexperiente daquela época, e que carregado estava eu de recordações! Sabia o que a guerra significava, e ao olhar para as lojas bem fornecidas e cintilantes, voltei a ter uma visão avassaladora das lojas de 1918, vazias e desertas, como que fixando-nos de olhos esbugalhados. Como num sonho acordado, vi as longas filas de mulheres desencantadas à porta das lojas de víveres, as mães enlutadas, os feridos, os estropiados, todo o impressionante horror de outrora regressando fantasmagoricamente na luz radiosa do meio-dia. Lembrei-me dos nossos velhos soldados, extenuados e esfarrapados, voltando do campo de batalha, o meu coração palpitante sentia toda a guerra passada nesta que hoje estava a começar e que ainda escondia dos olhares todo o seu horror. E eu sabia: de novo o passado se ia, de novo ficava reduzido a nada o que fora construído - a Europa, a pátria comum para a qual vivêramos, estava destruída muito para lá da nossa vida terrena. Algo diferente começava, uma nova época, mas quantos infernos e purgatórios ainda teríamos de palmilhar para a alcançar.
O sol brilhava em toda a sua força e plenitude. Ao regressar a casa, reparei de repente na minha própria sombra que me precedia, tal como via a sombra da guerra passada por trás da guerra presente. Durante todo este tempo, ela nunca mais saiu do meu lado, aquela sombra, pairando, dia e noite, sobre cada um dos meus pensamentos; talvez os seus escuros contornos apareçam também em algumas destas páginas. Mas, em última análise, cada sombra é também filha da luz, e só quem tenha vivido a claridade e a escuridão, a guerra e a paz, a ascensão e a queda, só esse terá verdadeiramente vivido. 
Stefan Zweig, O Mundo de Ontem

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