domingo, 30 de agosto de 2015

Os cronistas vindouros da nossa época hão de observar um dia que, no ano de 1937, quase todas as conversas, em todos os países da nossa apavorada Europa, se agitavam, invariavelmente, em torno da possibilidade ou não possibilidade de uma nova guerra mundial. Era inevitável ser este o tema fascinante de todos os encontros; por vezes, tinha-se a sensação nítida de que não eram já as pessoas que denunciavam o seu receio em suposições e esperanças, mas a própria atmosfera, o ar do nosso tempo, excitado. sobrecarregado de íntimas vibrações, em busca de palavras, em busca de expressão. Iniciara o debate o dono da casa, advogado de profissão e, por carácter, por natural tendência, homem convicto da razão que sempre lhe assistia; provou, com os habituais argumentos, o habitual disparate de que a nova geração tinha conhecimento da guerra e já se não deixaria arrastar para esta hecatombe como se deixara arrastar para a outra.
Já durante a mobilização, as espingardas se recusariam a disparar; sobretudo os antigos soldados da frente, como ele, esses ainda não tinham esquecido o que os esperava. Irritou-me a certeza idiota com que este homem, à hora em que dezenas, centenas de milhares de fábricas se ocupavam em produzir gases venenosos e matérias explosivas, afastava a possibilidade de uma guerra, com o mesmo gesto indolente com que o seu dedo fazia cair a cinza do cigarro.
- Não se deve acreditar sempre no que desejamos - intervim eu, em tom decidido.
Os ministérios e organizações militares que dirigem a grande aparelhagem bélica não se deitaram a dormir; enquanto nós nos adormentávamos com utopias, ocupavam eles o tempo de paz a organizar as massas antecipadamente, e, por assim dizer, a prepará-las, a tê-las na mão. Já agora, no seio da paz, graças à perfeição técnica da propaganda, o servilismo é vasto e atingiu proporções tão inacreditáveis, que, é certo, absolutamente certo, desde o momento em que a rádio projete para dentro de cada casa o aviso de mobilização, em parte alguma se esboçará a menor resistência. "O átomo homem, como vontade, não existe hoje." Naturalmente, todos eram de opinião contrária; segundo o velho hábito, pelo instinto da própria conservação, o homem procura escapar aos perigos que a consciência lhe aponta, declarando-os não existentes; é claro que tal otimismo barato, involuntariamente, mais se afirmara em face de um jantar, sumptuosamente servido no aposento próximo.
(...)
Eu ouvia surpreendido, interessado, sobretudo, pela veemência com que este homem singular falava.
- Não nos deixemos iludir. Se hoje, em qualquer país, mandassem rufar um tambor, convidando ao alistamento para uma guerra exótica, a guerra na Polinésia ou em qualquer recanto da África, logo se precipitariam milhares de homens, centenas de milhares, sem saberem porquê, talvez somente pelo prazer de se evadirem de si próprios, ou por condições particulares pouco agradáveis. Em todo o caso, vejo-me compelido a considerar nulo o facto da resistência contra a guerra. A recusa de um único isolado em face de uma organização exige sempre uma coragem mais forte do que o deixar-se arrastar, isto é, a coragem individual diminui cada vez mais nesta nossa época de constante e progressiva mecanização. Na guerra, quase que só se me deparou exclusivamente o fenómeno da coragem coletiva, a coragem dentro das fileiras. Todo aquele que se ponha a examinar com a lente descobre componentes singulares: muita vaidade, muita irreflexão e até aborrecimento. Antes de mais nada, muito medo ... sim, meus senhores, medo de ficar para trás, medo de ser troçado, medo de ficar isolado e, mais que tudo, medo de pertencer à oposição, em face do ímpeto que projeta os outros para a frente. A maior parte desses que, durante a campanha, eram considerados mais valentes, conheci-os pessoalmente e, na vida civil, eram tristes heróis. É claro que - acrescentou, virado para o dono da casa, que dava sinais de evidente descontentamento - de forma alguma me excluo a mim.

Stefan Zweig, Coração Impaciente

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